Lembro-me,
como se fosse ontem, de como nós estávamos apressados para a minha formatura do
ensino médio, época berço de lembranças tão boas que pude compartilhar com
você.
Certo
dia, depois das aulas, você foi à coordenação do curso e a professora reclamava
que havia uma aluna que sequer tinha levado o livro de física para a aula. A
coordenadora perguntou o nome da aluna e a professora respondeu. Por azar (ou
merecimento), o nome era o meu. Na volta para casa, em meio a um engarrafamento
que parecia não ter fim, ouvi uma longa bronca de que meu pai, professor da
escola, estava ouvindo falarem de alunos que não levam livros e,
coincidentemente, a aluna era eu. A bronca valeu a pena, porque no ano seguinte
acabei virando monitora de física (não sei se por milagre ou por medo de uma
nova bronca – ou os dois).
Em
meio aos corredores da escola, compartilhamos momentos de pai e filha, de
professor e aluna, de bons amigos que a vida uniu, por acidente ou sorte, na
mesma família.
Ainda
ouço os acordes do seu violão tocando as músicas que gostávamos de cantarolar
juntos, enxergo seus dedos dedilhando as cordas e escuto a sua voz cantando em
ritmo de samba qualquer louvor da igreja que aparecesse pela frente, sempre com
o mordiscar nos lábios de quem está muitíssimo empenhado em fazer algo bem.
Recordo-me
perfeitamente do dia que você me contou em segredo que havia comprado escondido
um cachorro e ele ia chegar de avião e, pra completar, a missão de busca-lo no
aeroporto era minha – sem contar para a mamãe. Quando a mamãe viu o cachorro,
ficou aborrecida, mas a gente riu e concluiu que a missão havia dado certo,
porque mais cedo ou mais tarde ela iria amolecer o coração com o filhotinho - e
amoleceu.
Você
guardou meus segredos como se fossem seus, inspirou-se com meus sonhos como se
você mesmo fosse realiza-los, planejou comigo a minha vida... mas agora você
não está aqui para ver como vou realizar meus (nossos) sonhos e cumprir os
planos que fizemos juntos em nossas conversas noturnas diárias. Toda noite, era
sagrado chegar em casa e, com você, sentar em qualquer lugar do quintal para
falar sobre qualquer coisa. Quando o silêncio reinava, a gente procurava um
novo assunto só para não terminar a conversa.
Eu
passei a vida inteira dizendo que queria ser professora, como você, só que você
não estará aqui para vivenciar a minha experiência de me espelhar no maior
exemplo de docência que já tive: dentro de casa, todos os dias, a vida inteira.
Recordo-me de você entrando na sala com seu estojinho de pincéis e apagador (e,
assim que pude, quis imitar).
Lembro-me
do tom e do som da sua voz me chamando de filha, de como você me abraçou e
chorou em nossos momentos difíceis e pediu para eu ser forte. Agora tudo o que
eu queria era o seu abraço.
Só
escuto o som do eco que faz em meu coração quando berro “pai” desesperadamente,
esperando ouvir de volta a sua voz dizendo “oi, bebezinha”. A casa perdeu a
cor, o lodo toma conta das paredes, a calçada está quebrada e o portão não abre
mais. A vida perdeu o jeito, a cor, o calor. O mundo perdeu você – e eu também.
Ainda
lembro-me do perfume azul do O Boticário que você sempre usava, da camisa que
dei de presente pra você com o meu primeiro salário e de como eu ficava feliz
quando você vestia. Guardo em minha memória como os seus olhos castanhos com
cílios clarinhos brilhavam ao me contar seus novos sonhos e de como eu torcia
para que você pudesse sempre realiza-los.
Recordo-me
do seu aborrecimento porque eu não conseguia tirar o pé da embreagem e apertar
o acelerador no tempo certo e da sua indignação quando finalmente aprendi a
dirigir e resolvi correr mais do que deveria. Lembro-me de como você puxava o
freio de mão quando achava que eu ia fazer besteira. O mais engraçado é que,
agora, dirigir é uma das coisas que eu mais gosto de fazer e quem me ensinou
foi você.
Você
foi meu primeiro grande melhor amigo e é aconchegante pensar que há muito de
você em mim, muito mais do que eu imaginava. Eu só queria que você estivesse
aqui para nós rirmos disso e ficarmos nos gabando.
A
gente só entende a fragilidade da vida quando está muito perto da morte, só
sabe de verdade o que é felicidade quando está se afogando num tsunami de
tristeza, só compreende o que realmente é a saudade quando percebe que ela vai
ser eterna.
Faz
um frio insuportável em uma cidade bem próxima à Linha do Equador. O vento
sopra violentamente e eu só escuto o uivo do vão entre o vazio e a saudade. É
impossível ignorar a presença de uma pessoa extraordinária, mas mais difícil
ainda é se acostumar ausência dela. Eu escrevi um texto e, pela primeira vez na
vida, você não vai ler. Eu não estava pronta para isso. Na verdade, eu nunca
estaria.
Texto carinhosamente dedicado ao maior incentivador e fiel leitor deste blog.
Este texto é pra você, Pai.



