quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Eco



Lembro-me, como se fosse ontem, de como nós estávamos apressados para a minha formatura do ensino médio, época berço de lembranças tão boas que pude compartilhar com você.
Certo dia, depois das aulas, você foi à coordenação do curso e a professora reclamava que havia uma aluna que sequer tinha levado o livro de física para a aula. A coordenadora perguntou o nome da aluna e a professora respondeu. Por azar (ou merecimento), o nome era o meu. Na volta para casa, em meio a um engarrafamento que parecia não ter fim, ouvi uma longa bronca de que meu pai, professor da escola, estava ouvindo falarem de alunos que não levam livros e, coincidentemente, a aluna era eu. A bronca valeu a pena, porque no ano seguinte acabei virando monitora de física (não sei se por milagre ou por medo de uma nova bronca – ou os dois).
Em meio aos corredores da escola, compartilhamos momentos de pai e filha, de professor e aluna, de bons amigos que a vida uniu, por acidente ou sorte, na mesma família.
Ainda ouço os acordes do seu violão tocando as músicas que gostávamos de cantarolar juntos, enxergo seus dedos dedilhando as cordas e escuto a sua voz cantando em ritmo de samba qualquer louvor da igreja que aparecesse pela frente, sempre com o mordiscar nos lábios de quem está muitíssimo empenhado em fazer algo bem.
Recordo-me perfeitamente do dia que você me contou em segredo que havia comprado escondido um cachorro e ele ia chegar de avião e, pra completar, a missão de busca-lo no aeroporto era minha – sem contar para a mamãe. Quando a mamãe viu o cachorro, ficou aborrecida, mas a gente riu e concluiu que a missão havia dado certo, porque mais cedo ou mais tarde ela iria amolecer o coração com o filhotinho - e amoleceu.
Você guardou meus segredos como se fossem seus, inspirou-se com meus sonhos como se você mesmo fosse realiza-los, planejou comigo a minha vida... mas agora você não está aqui para ver como vou realizar meus (nossos) sonhos e cumprir os planos que fizemos juntos em nossas conversas noturnas diárias. Toda noite, era sagrado chegar em casa e, com você, sentar em qualquer lugar do quintal para falar sobre qualquer coisa. Quando o silêncio reinava, a gente procurava um novo assunto só para não terminar a conversa.
Eu passei a vida inteira dizendo que queria ser professora, como você, só que você não estará aqui para vivenciar a minha experiência de me espelhar no maior exemplo de docência que já tive: dentro de casa, todos os dias, a vida inteira. Recordo-me de você entrando na sala com seu estojinho de pincéis e apagador (e, assim que pude, quis imitar).
Lembro-me do tom e do som da sua voz me chamando de filha, de como você me abraçou e chorou em nossos momentos difíceis e pediu para eu ser forte. Agora tudo o que eu queria era o seu abraço.
Só escuto o som do eco que faz em meu coração quando berro “pai” desesperadamente, esperando ouvir de volta a sua voz dizendo “oi, bebezinha”. A casa perdeu a cor, o lodo toma conta das paredes, a calçada está quebrada e o portão não abre mais. A vida perdeu o jeito, a cor, o calor. O mundo perdeu você – e eu também.
Ainda lembro-me do perfume azul do O Boticário que você sempre usava, da camisa que dei de presente pra você com o meu primeiro salário e de como eu ficava feliz quando você vestia. Guardo em minha memória como os seus olhos castanhos com cílios clarinhos brilhavam ao me contar seus novos sonhos e de como eu torcia para que você pudesse sempre realiza-los.
Recordo-me do seu aborrecimento porque eu não conseguia tirar o pé da embreagem e apertar o acelerador no tempo certo e da sua indignação quando finalmente aprendi a dirigir e resolvi correr mais do que deveria. Lembro-me de como você puxava o freio de mão quando achava que eu ia fazer besteira. O mais engraçado é que, agora, dirigir é uma das coisas que eu mais gosto de fazer e quem me ensinou foi você.
Você foi meu primeiro grande melhor amigo e é aconchegante pensar que há muito de você em mim, muito mais do que eu imaginava. Eu só queria que você estivesse aqui para nós rirmos disso e ficarmos nos gabando.
A gente só entende a fragilidade da vida quando está muito perto da morte, só sabe de verdade o que é felicidade quando está se afogando num tsunami de tristeza, só compreende o que realmente é a saudade quando percebe que ela vai ser eterna.
Faz um frio insuportável em uma cidade bem próxima à Linha do Equador. O vento sopra violentamente e eu só escuto o uivo do vão entre o vazio e a saudade. É impossível ignorar a presença de uma pessoa extraordinária, mas mais difícil ainda é se acostumar ausência dela. Eu escrevi um texto e, pela primeira vez na vida, você não vai ler. Eu não estava pronta para isso. Na verdade, eu nunca estaria.

Texto carinhosamente dedicado ao maior incentivador e fiel leitor deste blog. 
Este texto é pra você, Pai. 

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Momento



Nós temos o costume de viver com pressa, desesperados para alcançar lugares cada vez mais altos em um tempo cada vez menor, surtados em atingir metas que talvez não caibam em nossas realidades, agoniados em realizar nossos sonhos sem sequer dormir. O ponto é que, caso não alcancemos os nossos objetivos no tempo que determinamos, tendemos a nos julgar insuficientes para eles e deixamos de acreditar em nosso potencial, tão instantaneamente quanto acreditamos nele antes de fracassar.
O fracasso é inerente ao crescimento, porque com ele aprendemos o quê e onde podemos melhorar para, enfim, alcançar nossos sonhos. O grande problema é que convivemos com a instantaneidade de vidas constantemente felizes exibidas no Instagram e no Facebook, mural dos méritos e conquistas medidas por likes, de modo que esquecemos que por trás dos @ existem pessoas que choram, fracassam, viram a noite... elas só não contam.
Com isto, tendemos a crer que todos devem alcançar o determinado sonho no determinado momento, porque a vida nunca deixa de ser esse desespero cronometrado em metas exibidas em redes sociais, esquecendo de que o momento de cada pessoa é intrínseco a ela e à sua própria realidade, diferente da minha, da sua, do outro.
Nada disso é uma crítica: é apenas um lembrete (pra mim e pra você). Um lembrete para não desacreditar dos seus sonhos porque o Fulano já conquistou os dele e está em Nova Iorque curtindo as férias, enquanto você continua batalhando pelos mesmos sonhos. Os seus sonhos são seus e o seu momento vai chegar também.
A realidade por trás das lentes dos celulares traz à tona pessoas que, possivelmente, sofreram muito antes de chegar “lá” (e para elas talvez isto ainda não seja “lá”), mas que costumam mostrar só a parte boa, sem as lágrimas, sem os dias sonolentos após as noites não dormidas, sem o medo. Mas a vida real é o que é, e precisamos amarrar um barbante no dedo indicador para lembrar disso sempre, sob pena de surtos de ansiedade constantes.
Alcançar sonhos requer sacrifícios e a medida do sacrifício depende da perspectiva de quem passa por ele. O que todos sempre esquecemos é que cada pessoa tem o seu tempo, a sua resistência, o seu ritmo... o seu momento. A nossa rotina regida por prazos peremptórios nos faz esquecer de que, se não der certo, a gente pode tentar de novo, e de novo, e de novo, até chegar “lá”, onde quer que fique o seu “lá”. Coragem, reseta o videogame, tenta de novo, você vai passar essa fase.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Quatro



Já é Copa do Mundo outra vez, o tempo passou tão rápido que nem parece que faz tanto tempo que eu apostei que o Neymar faria o primeiro gol da Copa de 2014 e ganhei. Ganhei a aposta e teu coração, em que pese termos pedido a Copa de lavada. A derrota para a Alemanha em 2014 foi inversamente proporcional ao quanto deu certo o primeiro gol do Neymar, pois cá estamos até hoje, recebendo uma nova Copa, vibrando pelo Hexa.
Em quatro anos de mergulhos profundos na queda livre que é o primeiro amor maduro, aprendemos mais sobre a primeira e a terceira pessoas do singular. Nós, como pronome pessoal reto e como substantivo. Nós que atamos ao longo desses quatro anos vividos juntos.
A criação dos mais diversos modelos de utilidade nessa (re)invenção que é compartilhar a vida com você. Ir sempre ao mesmo restaurante e pedir o mesmo hambúrguer com cebola crispy e batata canoa e nunca enjoar, porque cada dia escrevemos um parágrafo diferente da nossa história (e esta frase é deveras clichê, admito).
O amor é clichê. A temperança de viver um amor tranquilo é perfeitamente concretizada no seu abraço ao deitar com a cabeça no travesseiro antes de dormir e contar todas as histórias que vivemos no dia, ao saber que você chegou em casa pelo jeito que você faz barulho subindo as escadas ou, até mesmo, ao instigar seu sonambulismo só pra contar o que você disse no dia seguinte e a gente dar boas risadas de nós mesmos. O amor clichê é gostosinho como um suco de laranja doce, porque milkshake demais enjoa e suco de limão sem açúcar requer um certo esforço.
Depois de quatro anos, eu já mudei de cabelo mil vezes e você nunca usou all star, você já comeu uvas e eu continuo odiando tomate, eu aceitei o fato de que você é um metaleiro que gosta de Ivete Sangalo e você aceitou o fato de que eu gosto de um pagodinho só para variar a playlist habitual do Djavan, você não usa mais aquela blusa que eu odeio listrada com branco e eu evito tomara-que-caia porque você não curte, você ainda não leu a saga Harry Potter e eu continuo me atrapalhando pra conversar em inglês, mas a gente continua falando palavrão, apesar de ter tentado parar várias vezes. Algumas coisas mudam, outras não, o que é bom para saber quem somos agora sem esquecer quem éramos ontem.
Eu tenho sorte por ter encontrado nos seus olhos o verde mais bonito que já vi, perfeitamente enquadrados pela moldura preta dos seus óculos que escolhi. A gente é o perfeito casal que dá certo de primeira na comédia romântica, o que faz com que o filme seja sem graça e doce demais, mas que encaixa perfeitamente com a nossa história, porque arrisco dizer que somos a Lily Aldrin e o Marshall Eriksen da vida real.
O nosso amor é tão concreto que o “eu lírico” desta prosa é assumidamente eu, aqui, ouvindo sua respiração ao dormir, pensando que já são 5h30 da manhã e nós temos que acordar daqui a pouquinho. O ponto é que acredito que a data comemorativa merece seu registro no meu santuário, e meu santuário é aqui. O Hexa eu não sei se vem, mas o nosso amor vai bem.


domingo, 20 de maio de 2018

Eu tenho um sonho


Um não, vários! Tenho uma quantidade tão imensa de sonhos que sequer consigo administrar qual vou realizar primeiro. Todos os meus sonhos estão casados uns com os outros, de uma maneira ou de outra, o problema é coloca-los em fila indiana para realizar um de cada vez. De vez em quando, enquanto trabalho na realização de um, o outro enfia o nariz no meio e tenta furar a fila.
O grande problema é que não sei se sou suficiente para mim mesma, se todos os “eus” que construo todos os dias cabem nesta mocinha de vinte e poucos anos que luta diariamente para conquistar seu lugar no mundo e, ao deitar a cabeça no travesseiro, tem o péssimo hábito de engolir o choro pela angústia de não saber se vai chegar lá (e ela nem sabe onde fica este “lá”).
Em um ano de tantas tomadas de decisões, de tantos momentos de pressão e trabalho árduo, manter a calma e dormir acaba ficando sempre em segundo (terceiro, quarto, quinto...) lugar na vida de quem não quer parar de planejar e (tentar) semear coisas boas para si.
Só que as sementes têm o tempo da natureza para germinar, crescer e frutificar, e é exatamente isto que os imediatistas e ansiosos custam a entender (e eu assino o número um na lista de frequência destes).
Vez ou outra, chego a implorar mentalmente por um spoiler de como serei no futuro, pra saber se algum dia conseguirei realizar pelo menos a metade dos meus planos escritos no caderninho “sonhos e metas” (é, eu tenho um caderno para isso). Acontece que se eu soubesse o que ocorrerá no futuro, talvez desanimasse agora, sem nem saber tudo o que acontece pela metade do caminho e, a menos que eu tivesse um DeLorean adaptado pelo Doc Brown, não conseguiria apagar os rastros possivelmente desastrosos de saber tudo antes do tempo.
O ponto crucial é que sei para onde quero ir, quiçá eu saiba vagamente como chegar lá, mas quero viajar a km/s e desesperadamente ver meus planos acontecerem diante dos meus olhos. Erro grave, eu sei. Diriam meus sábios mestres: calma, tudo acontece no seu próprio tempo. Um dos meus grandes defeitos é achar que tenho um Vira-Tempo sem, na realidade, tê-lo.
E se eu não passar na prova semana que vem? E se eu não estiver onde quero ano que vem? E se eu não conseguir estar onde planejo daqui a quatro anos? E se, e se, e se? São perguntas insuportáveis de uma cabeça que funciona mais rápido do que meu corpo consegue aguentar e é mais impertinente do que meu psicológico suporta.
Eu não sei se caibo em mim, não sei se um dia caberei ou, pior, se um dia me sentirei insuficiente para o que o meu “eu” jovem de vinte e poucos anos esperava que eu fosse. Só saberei vivendo. Passo a passo, dia após dia. Lembro que quando eu era adolescente, fazia os mesmos questionamentos e a minha professora de literatura do Ensino Médio dizia: “calma, pequena”. Porque, parafraseando uma grande amiga*, eu não quero ser a segunda “Alguém”, quero ser Debora Vieira, a Primeira de Meu Nome. É ambicioso, talvez soe mal, mas sonho com toda a humildade do mundo e vontade de construir diariamente o “eu” que eu quero ser. Ainda que durma tão pouco, sonho muito.



*A amiga que parafraseei se chama Ruanne Ribeiro e escreve lindos textos,
os quais sempre tenho o prazer de ler, quando divulgados.