sábado, 23 de dezembro de 2023

The same old fears

Todo dezembro acaba doendo mais, mesmo que eu finja dar de ombros às datas comemorativas e fraternais que envolvem a cultura ocidental. Assim como todo agosto é mascarado pela justificativa comercial por trás das homenagens, e como todo início de janeiro vem assombrado, porque ainda não encontrei um argumento para fingir indiferença.

É véspera da véspera de Natal, eu me flagrei chorando idiotamente em frente à fatia de cheesecake de amoras e do copo cheio de água com gás com uma rodela de limão. Enquanto isso, as outras mesas confraternizam por terem encontrado buracos sincronizados na agenda para sentar frente a frente e compartilhar amenidades, casais se beijam e abraçam envolvidos pelo delicioso otimismo de que dessa vez vai. Gosto de observar a felicidade enquanto as lágrimas escorrem pelos cantos externos dos meus olhos, estragando o delineado gatinho que fiz especialmente para conhecer o corte de cabelo que eu escolhi para o ano seguinte. Todo dezembro, inevitavelmente, dói mais. 

Aprendi a lidar com o luto de diferentes maneiras desde que você se foi. Dessa vez, contudo, foi difícil encarar a decoração de Natal na Avenida Paulista e não lembrar daquela foto em que você estourou o laranja de um enfeite no canto esquerdo da câmera profissional que você usava para fingir habilidade. Lembro dessa foto como se fosse ontem, mas perdemos em algum HD que só você sabia em que lugar guardava. Malditas fotografias digitais, guardam recordações e se perdem na fumaça de uma nuvem ou em um cartão de memória largado por aí.

Eu já sei contar piadas sobre o que você diria em ocasiões específicas, mas dói imensamente você não saber em detalhes o meu novo endereço e não ter lido uma linha sequer do meu livro lançado no ano que passou. Tento não pensar sobre isso e evito o assunto sempre que posso, mas em dezembro, na véspera da véspera de Natal, a Avenida Paulista não me deixou ignorar o buraco em meu peito por saber que amanhã não vamos cantar as clássicas da mpb ao som de voz e violão, daquele jeito desafinado e sincronizado que fazíamos desde que me entendo por gente. Dezembro acaba doendo mais, porque a cada virada de ano que passa eu me afasto daquela em que recebi sua ligação repetindo ininterruptamente que me amava, tentando sobrepor o grito ao barulho que fazia no fundo da ligação. Se o meu telefone tocar, nunca mais será você.

Na véspera da véspera de Natal, em frente à fatia de cheesecake de amoras e ao copo de água com gás, caiu a ficha de que nunca vou poder me exibir por dar conta das ladeiras de Perdizes no meu carro de marcha manual. Também não vou poder ouvir você resmungar por eu ter cortado meu cabelo na altura do queixo, seguido do comentário de que eu deveria deixá-lo crescer para você tocar de novo aquela do Caetano pra mim. Tampouco vou poder reclamar das minhas últimas desventuras e ouvir de volta o conselho típico de alguém que já se conformou com as surpresas do mundo: “sabe o que é isso? É a vida”. A morte me encontra viva todos os dias e eu insisto em ficar por aqui, a despeito da nossa precoce despedida, ainda não digerida completamente (embora eu esconda com sarcasmo muitas camadas de saudade).

Em dezembro, na véspera da véspera de Natal, todas as falas previsíveis fazem mais falta. A foto da decoração laranjada está por aí, perdida pelo espaço, e eu jamais poderei vê-la novamente, tanto quanto seu sorriso com o característico diastema entre os dentes da frente. Já aprendi a lidar com a sua ida, mas continuo achando uma afronta. Uma tremenda arrogância do destino provocar tamanha ausência sem que, ao menos, eu pudesse ter mais uma hora ao telefone pra dizer que a decoração da Paulista está horrível de insossa este ano. Um parágrafo carregado de sentimentos incondizentes com a data em que o texto está sendo escrito, enquanto estou com a maquiagem borrada entre completos desconhecidos, profundamente satisfeita por ser invisível nesta cidade. A casa vai fechar, pedi a máquina de cartão. The same old fears, wish you were here.

sábado, 16 de setembro de 2023

Coda

Quando esperava nas coxias pelo transcorrer do pas-de-deux, de sapatilhas calçadas e figurino no corpo, sentia arrepiar até o último fio de cabelo toda vez que o casal começava a dançar a coda no palco. Como corpo de baile ou plateia, a coda é um dos momentos mais eletrizantes dos pas-de-deux nos ballets de repertório. Normalmente, nesse momento os bailarinos são desafiados a ultrapassar os limites do próprio corpo, com saltos sequenciais em círculo ou trinta e dois fouettés (aquele movimento em que a bailarina fica girando em torno de si e usando a própria perna como um chicote).

Há um ano, coloquei o celular em italiano para conviver com o idioma. Ao ouvir música no Spotify, fui colocar uma canção “na fila” e me deparei com a expressão “aggiungi alla coda”. Entendi que seria, então, a música a ser tocada na sequência, o que me remeteu imediatamente à sequência dos pas-de-deux clássicos: o casal dança junto, cada um dos bailarinos dança sozinhos as suas variações, depois os dois retornam para a coda, num momento de ápice antes da finalização do duo.

Entre a coda da linguagem da dança e a coda do Spotify, fui obrigada a pesquisar no dicionário italiano o que significa a palavra, cuja tradução literal é “cauda”. Para a vida, traduzi a coda como aquele trecho que vem em seguida, com sensações de êxtase e desafios. O público nunca sabe o que esperar da coda (mesmo que saiba o ballet de repertório de cor e salteado, cada par tem suas próprias adaptações), mas a bailarina sabe exatamente o que vai fazer, porque já treinou mil e uma vezes. É possível que tropece ou que não consiga trincar o duplo fouetté, mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, acreditando que ensaiou a vida inteira para viver aquele momento, utilizando os desafios todos para ganhar a admiração do público.

Para conquistar a plateia com a delicadeza e elegância de seus braços, a bailarina tem que lembrar que é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre. Não importam os calos e a tendinite, ela deve encher o calcanhar de esparadrapo e spray analgésico, o palco não se importa com as coxias, mesmo sabendo que elas existem. É momento de sorrir e encarar os desafios desta coda, porque cada clássico de repertório vivido até aqui dominou por completo meu coração.

Sinto como se estivesse nas coxias do Theatro São Pedro, com os cabelos puxados em um coque bem preso, ofegante e apreensiva, tomada por um frio na barriga indescritível, porém empolgada e excitada pelo que viria em seguida, enquanto meu partner finaliza o seu trecho da coda, esperando ansiosamente pela minha entrada no palco. Nada a fazer, senão esquecer o medo, respirar fundo, colocar os dois pés no linóleo e sentir a luz amarela bater em meu rosto. Longe se vai sonhando demais, mas onde se chega assim? Exatamente aqui, onde estou. Entre passos e tropeços: eu, caçadora de mim*.

 

* Milton Nascimento estava na coda do Spotify, fator que certamente influenciou o conteúdo desta prosa. 


sábado, 9 de setembro de 2023

Quiçá

Desde cedo sentada na cadeira marfim acolchoada, evitando o sol com o blackout estendido e fugindo da música ambiente pelo atalho dos fones de ouvido, digitava minha solidão de pensamentos com o notebook ligado na tomada da cafeteria. O ponteiro já chegava quase ao quarto quadrante do relógio e inúmeras pessoas entraram e saíram pela porta do café.

Se antes estava vidrada no texto em espanhol que lia para fins acadêmicos, com o passar do dia, foi inevitável observar os movimentos das mesas e todas as possíveis histórias sendo escritas ali, diante de meu olhar descompromissado e, até então, também desinteressado. Tantos quases, indícios, finalizações e reconstruções podem morar dos lados opostos de cada uma das mesas.

À esquerda, sentou um casal bem bonito. Um homem alto e esguio, com a barba feita e usando camisa azul petróleo e óculos de grau quadrados, acompanhando um homem de estatura mediana, camisa verde musgo, olhos azuis e cabelos castanhos claros desembaraçados. Sentaram-se à mesa, apoiaram as mãos uma sobre a outra e começaram a tagarelar sobre a música ao vivo que começou de repente, tocando Beatles e Oasis (com todas as piadas intermediárias que envolvem as duas bandas de rock).

“Não, imagina! Não vai chegar mais ninguém, pode pegar a cadeira.”

Na verdade, estou esperando, não para sentar-se à mesa, talvez para caminhar, mas isso é uma outra história.

Um time de futsal de crianças cantando parabéns se sobrepôs à música ambiente. Todos antes dos dez, em faixas intermediárias, celebravam a vida de uma senhorinha de cabelos lilás, que usava um vestido estampado vermelho até os joelhos. As crianças disputavam assoprar a vela, mas o pai determinou que seria a garotinha menor a assoprar. A senhorinha sorria, feliz, pela nova idade e por estar rodeada pelo amor daqueles pequenos (netos, presumo).

Na diagonal, sentado na bancada de tomadas, um rapaz digitava em seu tablet. Também sozinho com seus pensamentos, ou acompanhado por quem lhe mandava mensagem, ou pela mulher que lhe abraçou pelas costas e lhe beijou a bochecha direita enquanto eu observava a cena. Ele virou um pouco assustado, guardou o celular atônito, abriu um sorriso amarelo e chamou o garçom. A conversa não andou bem, ao que parece, porque ela levantou chorando vinte minutos depois.

“Não, obrigada! Por enquanto, estou satisfeita”.

Não estava. Meus próprios quases, indícios, finalizações e reconstruções me trazem insatisfações que trancam minha garganta nessa tarde de sábado, mas fingi elegantemente que falava apenas da água com gás, gelo e limão. O garçom foi embora, atender alguém que consumisse mais e gastasse menos energia.

O casal ao lado estava calado, pensei que fosse mais uma daquelas histórias de duas pessoas que estão juntas há muitos anos e já não têm assunto. O homem comia camarões e a mulher bebia uma cerveja. Garçom! Eles querem muito uma colher (eles já haviam dito isso pelo menos umas trinta vezes, mas ninguém dava atenção para os dois, tampouco eles mesmos se davam atenção). Depois de comer e beber, resolveram falar, e aí falaram bastante. Eram amigos, tinham muita fofoca para colocar em dia e, no celular, alguns affairs para administrar no final de semana. Como eu, também odiaram quando começou a tocar Ed Sheeran. Ninguém aguenta mais Ed Sheeran, tampouco sabemos quem é o gerente do local, pois, segundo ele, “tem tanta gente estranha nesse lugar”. Eu não os conheço, escuto a conversa e participo mentalmente, como se fizesse parte dela.

Minha torta de limão chegou, estava linda! Pena que o chantilly estivesse duro, o creme de limão azedo e a massa precisasse de garfo e faca para se desfazer. Na mesa um pouco ali adiante ela parecia tão bonita e as amigas comiam tão alegremente. Talvez fosse mais sobre a conversa do que sobre a torta de limão, em silêncio não senti o mesmo sabor.

O garçom chegou para perguntar se estava tudo bem, respondi que sim. Ele indagou novamente, surpreendentemente insatisfeito com minha resposta: “lembra do Reginaldo Rossi? Você pode falar com o garçom”. Eu não estava num bar, tampouco queria conversar, queria só apreciar a movimentação dos casais, amigos e senhorinhas desconhecidos, enquanto lia meu texto e fazia algumas anotações aqui e ali. O garçom pressupôs que preciso conversar porque estou sozinha, pois de fato estou. Ou pela expressão de um grande talvez em minha testa, acentuada pelo franzir do cenho que escapou ao botox. Ou porque menti descaradamente ao dizer que estava satisfeita com meu quiçá e com a torta de limão. Ou mesmo porque a minha desconexão vai muito além do sinal fraco do Wi-Fi.

A gente cria certa simpatia pelo vai e vem, mas para todos os efeitos: “a conta, por favor”.

Preciso ir embora.

Não sei para onde.

Mas o quanto antes.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Lucidez

Aos quase trinta, já se passaram cinco desde o último adeus. Sempre que abro as portas de agosto, sinto o pesar da saudade e o involuntário flashback de cada um dos dias que anteciparam o silêncio. A gente não é ensinado a lidar com a morte, até que ela aconteça. Também não é ensinado a lidar com o luto, até que ele esteja instalado. Muito menos é ensinado a lidar com a saudade, especialmente do que não foi possível viver junto de quem se foi.

Eu teria uma vida inteira de novidades para contar. Relatos que, sei, você ouviria contente e orgulhoso. Outros que, com certeza, fariam você se aborrecer comigo. Como o carro sujo, as batidas nas laterais, a falta de autoestima, o cachorro grande dormindo na minha cama, as ultrapassagens perigosas no trânsito e o abuso do delivery. Eu queria ver sua expressão de insatisfação ao se deparar com a lateral esquerda do carro e ouvir a porta rangendo ao abrir, porque não arrumei até hoje. Queria que você reclamasse de todas as vezes em que não sou pontual e me encarasse com expressão de descontentamento quando deixei entrar água na marcha do carro ao fazer dele uma lancha. Gostaria muito de ver seu ar de desaprovação por eu ser tão você, mesmo que você tenha me desaconselhado veementemente a seguir esse caminho.

Agosto chega e, aos poucos, rasga meu coração com a saudade que sinto o resto do ano inteiro. Esse ano, em especial, com tantas coisas para te contar, com tantas dúvidas pra pedir conselhos, tantas felicidades pra partilhar. Assisti a um espetáculo de ballet e foi inevitável te sentir na plateia, mesmo que a plateia fosse eu. Todos os concertos de música clássica me remetem às lembranças da minha formação musical desenhada cuidadosamente por você. A cada aula, palestra e artigo, lembro de sua bolsinha de pincéis com apagador e das suas noites em claro que eu não entendia muito bem. Hoje entendo. Queria partilhá-las com você.

Quarta-feira da segunda semana de agosto, com o coração pesado como um piano, não identificava o porquê. Até me dar conta de que é quarta-feira da segunda semana de agosto, que precede uma das vésperas do dia dos pais. Só acho injusto, mas sei que é preciso lidar com a ausência e com meus demônios. Tenho ciência de que o porvir sempre nos reserva a morte, mais cedo ou mais tarde. Como a lembrança do céu azul daquele domingo de agosto em que apoiei minha cabeça no ombro de um amigo e disse: “acho que ele não passa de terça-feira”, e você se foi logo em seguida, no domingo mesmo. Como se esperasse que eu tivesse a tranquilidade de entender que você iria embora, para, então, partir. Tranquilidade que me fez soltar uma risadinha ao te ver de olhos fechados e rodeado por crisântemos brancos, imaginando que eu te diria que você estava parecido com uma ovelha, em uma constatação tragicômica que absolutamente ninguém seria capaz de entender.

Sinto falta dos seus olhos castanhos claros e do seu cabelo ralo penteado pra cima, das risadas e de me sentir invencível, porque você estaria ali. Saudades daqueles abraços longos em que eu ouvia atentamente seu coração bater, ou de te ver calçar os sapatos na porta de casa, sentado num banco de madeira e enchendo os pés de talco. O jardim de casa está morto faz tempo e os beija-flores pararam de me visitar, porque você nunca mais colocou água para eles no suporte floral de plástico. Os passarinhos da vizinhança ainda cantam no fim de tarde e na alvorada, mas faz tempo que não ligo o lustre metafórico que você construiu colocando uma lâmpada dentro de uma gaiola bonita de aço. As borboletas laranjadas do jardim também desapareceram, só sobreviveu a que tatuei no braço.

 Hoje, sem você aqui, fortaleço-me imaginando como seria se estivesse, o que diria a cada notícia nova, o que acharia dos quadros novos que pintei ou do meu bordado desajeitado. Como reagiria aos meus pretendentes, quais palpites daria sobre meu doutorado, que conselhos escolheria me dar e quais guardaria para si, aguardando a vida me ensinar. A vida tem me ensinado bastante, nem sempre com didática e às vezes tropeço em uma avaliação ou outra. Sinto falta do melhor professor que tive, e era com ele que eu gostaria de aprender a ser.

Na fluidez desse texto escrito com o coração na ponta dos dedos, queria que meu maior leitor tivesse a oportunidade de opinar sobre essas palavras (e sobre as outras que escrevi nesse meio tempo). A lucidez do adeus esmaga meu coração em agosto, mais que em qualquer outro mês, mais que por qualquer outro motivo. Em um café qualquer da cidade, escrevo essas palavras em uma tarde chuvosa e nublada, sabendo que ao chegar em casa vou encontrar sua ausência.

sábado, 31 de dezembro de 2022

O último e o primeiro

Sou bem relutante a qualquer misticismo, confesso. Apesar disso, também tento agarrar minhas esperanças em previsões de horóscopo ou tarot, que de alguma forma sirvam como consolo pelas desventuras vividas no presente, na esperança de que o futuro trará algum tipo de recompensa por todas as vezes em que precisei cavar resiliência num poço que já estava fundo o suficiente pra me afogar. Dois mil e vinte e dois foi uma mistura louca e esquisita de êxito e fracasso, realizações e frustrações, tudo ao mesmo tempo, no mesmo drink.

Totalmente sóbria, nos últimos dias do ano, apenas sob efeito do meu ansiolítico, resolvi testar uma experiência diferente: a reclusão. Gosto de ser só e isso não é novidade, o que vinte e dois me ensinou foi a aproveitar minha presença, mesmo quando eu sou uma companhia desagradável. Quem melhor do que eu pra saber lidar com aquela convidada que chegou fora de hora e entrou de sapatos sujos no meu quarto, deixando-me grudada na cama durante dias? Foi então que precisei me olhar no espelho e aceitar, também, a minha versão com olhos inchados de tanto dormir a contragosto, e entender que, apesar de intragável, ela também sou eu. Saber conviver com ela e o que fazer pra ela ir embora é o meu maior desafio, e foi o maior de todos em vinte e dois. Mergulhei nas profundezas do meu coração, da minha escrita, dos meus limites e das minhas incertezas. O autoconhecimento dói. Dói muito.

Não consegui embarcar nos festejos de fim de ano, nem nas confraternizações familiares, tampouco em rituais (tenho medo, confesso, porque da última vez o feitiço virou contra a feiticeira e incorporei um pára-raio de desgraça). Faltando umas tantas pra meia noite, saí pela casa soprando canela, como dizem que tem que ser feito. Preciso ser próspera para pagar dívidas e já tinha a mistura aqui. No pior dos casos, se a simpatia não der certo, ao menos minha mão está cheirando a rabanada.

Sentei na minha mesa dos pensamentos, com o planner novo em branco, sem metas estabelecidas pra me frustrar e sem reflexões pra me alfinetar. Decidi passar a virada sozinha, ao som do ar condicionado, bebendo água e escrevendo.

É o que faço da vida. Escrevo. Por gosto, mas também por necessidade. Pra desfazer esse nó na garganta que não sai nem na terapia. Pra encarar todas as minhas versões, inventadas ou reais. Pra contar mentiras palatáveis pra quem gosta de romance. Pra verbalizar meu grito mudo. Hoje, com a versão nua e crua encarnada, escrevo que faltam dois minutos pra acabar dois mil e vinte e dois.

Sigo por aqui, sem enredo, olhando às vezes para a minha cachorra que tem medo de fogos, para me certificar que está tudo bem. Está. Eu também estou. Digerindo de formas confusas minhas tantas culpas pelo que fui e por quem sou, escrevendo agora que falta um.

Não sei quantos segundos, exatamente, neste instante.

Pisquei algumas vezes, porque o glitter já caiu pelos olhos enquanto lacrimejo por baixo dos óculos agateados.

Meia noite.

Dois mil e vinte e três: mudou o calendário do computador. Eu não sei, mesmo, o que esperar. Sequer sei se espero algo. Não sei se pela depressão ou pelos calos, vejo o Ano Novo só como um novo calendário, mas a vida é a mesma e nós, lamentavelmente, também. A mudança que espero vem de dentro, mas também de rumos, cujas rédeas já tomei, mas ainda não cheguei. Minha bússola está tremelicando, algum problema com o ímã. Deve ser porque a terra é plana. Não! A partir de hoje, primeiro de janeiro de dois mil e vinte e três, ela voltou a ser redonda. Ainda bem, muitos anos de ensino médio e fundamental iriam pelo ralo com tanta lorota, imagine só meu mestrado em direitos humanos... O dia vai nascer feliz lá em Brasília. Essa foi uma das benesses de dois mil e vinte e dois.

Meia noite e três. As pessoas devem estar se abraçando, fazendo brindes de champagne barato e atraindo boas energias para o novo ano que nasce. A essa altura, já deve ter nascido também o primeiro bebê de dois mil e vinte e três em uma maternidade qualquer do Brasil. Espero mesmo que as boas energias venham, e que o dia nasça feliz pra todos, porque ainda estamos sob efeito da morfina que foi a pandemia. Os ouvidos ainda estão zumbindo depois de tudo isso e de todos que perdemos. Estamos reaprendendo a viver.

Deixei em vinte e dois o cachorro da minha vida, minha melhor amiga Leia. Vai doer muito escrever o in memoriam nos agradecimentos do meu livro, que deve sair agora no primeiro semestre. Ela me arrancou sorrisos quando nem eu mesma achava que era possível.

Entrei em vinte e três com o pé esquerdo. Porque sou canhota, sou gauche, e teremos um novo governo vermelho. Meia noite e seis. Escrevo só o que vem. De repente, o texto deixou de ser sobre a depressão e passou a ser sobre esperança. Acabo de descobrir que ainda há isso por aqui, na espontaneidade das palavras que fluem sem controle nas pontas dos meus dedos. Este é o primeiro escrito de dois mil e vinte e três, e o último de vinte e dois. Teria um pout-pourri de músicas clichês pra citar, mas a mpb já fez isso por mim, então me poupou um trabalhão. Que bom que não morri ano passado, espero agora sentir de novo vontade de viver. Isso é sobre depressão, mas também é sobre esperança, que expressei no glitter azul e rosa dos meus olhos e na minha saia de gaivotas. É libertador ser eu mesma, em todas as minhas cores, sem poda de asas. Fernão Capelo transcendeu antes de ensinar, após ficar muito insatisfeito com tudo o que vivia e ousar fazer novas manobras. Em vinte e três quero voar. Meia noite e treze.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Camisa azul celeste

 

Acordei cambaleando de sono, porque demorei a apagar a luminária na noite anterior. A roupa do dia – quase nunca separada com antecedência, mas já mentalizada minimamente – estava escondida pelo quarto e, certamente, ainda amarrotada do pós-lavagem na máquina de lavar velha e enguiçada, que mais parece uma escola de samba fora do ritmo. Separei com pressa a saia midi e saí a procurar a camisa azul celeste de alfaiataria, que, apesar do calor que faz às margens da Linha do Equador, transmite a seriedade que preciso para uma segunda-feira de audiência no Fórum Cível.

Às três porradas (pelo cansaço e pela pressa), montei a tábua de passar roupa e misturei um tanto de água no fim de amaciante que restava no borrifador. Peguei a camisa, estendi sobre a tábua e liguei o ferro de passar na tomada. Nada muito emocionante, tudo com a normalidade de uma segunda-feira que chegou após um final de semana sentada à frente do computador. Mais um dia da fase adulta, menos um dia de vida. Mais um dia na corda bamba de semear sonhos e colher burn out.

Comecei passando as costas da camisa, até ficarem bem esticadas, porque odeio roupa amarrotada. Logo escuto a voz de mãe que dizia antigamente: “andas toda amarrotada por aí, o que vão pensar da tua mãe?”. Muitas camadas de problematizações sobre a frase e o patriarcado, mas restou a mensagem de uma mãe cuidadosa que me ensinou a sair de casa alinhada.

Terminei as costas, encaixei o ombro da camisa no semicírculo da tábua e passei o lado direito, depois o lado esquerdo. Sacudi levemente a roupa, para analisar o andamento da tarefa feita toscamente, e percebi que estava muito pior do que eu imaginava: ao tentar arrumar um lado, o outro inevitavelmente amarrotou, as costas da camisa voltaram quase à estaca zero, as mangas permaneciam enrugadas e a gola estava semelhante a uma pintura em craquelê.

Olhei para o relógio na tela do celular, a hora já havia avançado e eu não conseguiria mais tomar café, mas era uma questão de honra sair de casa com a camisa bem passada. Respirei fundo, chamei cinco palavrões mentalmente, coloquei o espresso para preparar na máquina de café e voltei à tábua. Nesse estica e puxa, percebi que é difícil demais manter a camisa inteira lisa, assim como todas as mangas da vida alinhadas.

A gente perde o sono e deixa de comer direito pra arrumar de um lado, aí o corpo grita e te põe doente. A doença atrasa o andamento das obrigações, mas é preciso descansar. Se a gente descansa, vem a mosca da culpa atrás da orelha sussurrar: você está fodido, o tempo está correndo, olha só em quantos prazos fatais você vai tropeçar se não passar logo a manga dessa camisa. Aí manda mensagem pra psiquiatra, claro, porque o remédio está acabando, e marca a sessão de terapia da semana que vem. Só que nessa coisa toda acabei de perceber que já faz dois meses que não corro na praça, então estou sem exercícios físicos, e engordei, e piorou a rinite e o ronco, e não tenho sono de qualidade, até porque há muito não durmo direito. Nem fiz a cirurgia do desvio de septo, mas também não me importo. De madrugada, ao invés de cumprir tarefas, escrevo crônica. A porra da camisa lá: toda amarrotada. Só porque hoje, justamente hoje, resolvi que queria usar alfaiataria pra parecer séria e respeitável.

Não há quem passe a minha roupa, assim como não há quem viva a minha vida. Sou obrigada, todos os dias, a tentar alinhar os emaranhados do tecido. E como vão os affairs? Sei lá, cara. Se foram para algum lugar, eu não soube o paradeiro. Também não quero saber. O único itinerário que me interessa é aquele cujo destino sou eu mesma.

Deslizei o ferro pelo lado esquerdo da camisa, chegando até a ponta da manga. Passei de novo, de novo, de novo, até ficar ótimo. Quando analisei, voilà: o lado direito estava todo escroto de novo. Respira fundo, agradece pelo dia bom que vem pela frente e mentaliza que você vai passar o dia todo sorrindo e sendo espirituosa, engraçada, gentil e com pensamento rápido. Um deslize de frase lacônica já se desdobra em suposições. Será que são os hormônios? É aquele período lá do mês? São tantos questionamentos importantes sobre o humor de uma mulher! Energia lá em cima, cacete.

Meu café já até esfriou a essa altura, porque começou aquela dorzinha de gastrite por tomar café de barriga vazia. Esqueci também de beber água. Acabei de lembrar que não respondi aquela mensagem da semana passada, tampouco atualizei minha amiga sobre o último date que tive, também não me posicionei nas redes sociais sobre a pauta importante do dia que está todo mundo falando e eu não faço ideia do que seja. Tudo passou tão rápido, que o mês já acabou e eu nem li aquele livro sobre finanças que prometi que leria ano passado, nem bebi dois goles de poesia no feriado, dormi no meio do episódio da nova série que está bombando (e não saberei comentar, porque não sei do que se trata). Acabei não dando o ar da minha graça pelos botecos da metrópole e, com os poucos que falei, fiquei cansada só de pensar.

Eu só queria um Cheddar McMelt e escutar música pop sem precisar unir uma sílaba na outra, mas fui tão atropelada pelo mês quanto a camisa azul pelo ferro de passar. Como a camisa azul celeste, toda vez que tento arrumar um lado da minha vida, o outro amarrota. Talvez eu não saiba passar roupa, ou talvez simplesmente viver seja tão confuso quanto se manter alinhado o dia todo. Até porque, no fim do dia, a camisa já sujou, o delineado já escorreu, o carisma evaporou... e eu ainda estou aqui, sentada na beira da cama e olhando para a tábua de passar roupa, com a camisa azul amassada e mais uma segunda-feira de sobrevivência pela frente. Amarrotada ou não, hei de encará-la.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Then it's a date

Se a vida fosse um grande banquete chique, os episódios seriam feitos de improviso pelo chef e colocados naqueles pratos com tampa prateada, que os grã-finos chamam de cloche. Para quem se senta à mesa, sem saber pelo que esperar, pode vir um combinado de arroz à piamontese e filé, o melhor corte de sushi, pastel de pato ou um pote de sorvete com feijão congelado dentro. Resta saber, portanto, se o paladar do degustador estará a postos para o inesperado, como quem vai à Dedos de Mel e resolve experimentar feijõezinhos de todos os sabores (foi mais ou menos assim que descobri que compartilhávamos a mesma sala comunal em Hogwarts).

De comum acordo, decidimos visitar um lugar novo na cidade, cuja decoração era composta por alguns dos nossos itens favoritos: livros. As paredes verde-bandeira, agraciadas pelas prateleiras amarelas, receberam um toque especial dos livros de sebo encapados de vermelho com letra dourada, em uma belíssima mensagem subliminar que sussurra: ainda há chance de ser gauche.

Falando em gauche... logo após descobrirmos que a nossa casa em Hogwarts é a mesma, apertamos dois sorrisos e nos encaramos breve e timidamente. Para quebrar o gelo (ou evitar a ebulição instantânea), ele perguntou quais eram minhas tatuagens. Naturalmente, recitei a ode de Ricardo Reis que repousa sobre minha clavícula, e depois falei desajeitadamente alguns versos do Poema de Sete Faces do Drummond: “vai, Carlos, ser gauche na vida!”. Por que gauche? Esquerda, torta, desajeitada canhota.

Rindo de forma incrédula, ele disse baixinho: “mentira que tu também gostas de poesia...”. Foi, então, que nossos lábios se encontraram em silêncio, ao som da banda de jazz que embalava a noite (e que nos ajudou a começar a conversar – o que não foi difícil, afinal de contas, porque já nas primeiras frases tropeçamos em Thelonious Monk).

Afastamos nossos rostos, sem desviar os olhares que, naquele momento, compartilhavam uma tensão particular e tentavam transmitir alguma mensagem mútua: onde tu estavas esse tempo todo? Por acaso estudaste as respostas que deverias dar às minhas perguntas antes de vir? O quão imenso é o universo dessa pessoa sentada ao meu lado?

Para quebrar o silêncio, perguntei: “e tu, quais tatuagens gostarias de fazer?”. Ele respondeu que gostaria de tatuar a Sociedade do Anel caminhando enfileirada, cena clássica de O Senhor dos Anéis que, por coincidência, ilustra a proteção de tela do meu computador. Dessa vez, eu ri, sem acreditar, pois aquelas informações todas só poderiam ser parte do trabalho de um excelente detetive particular, ou foi o chef que elabora o roteiro da vida que resolveu me pregar uma peça e caprichou no prato que está sob o cloche (ou tampa de inox misteriosa, para os menos elegantes).

Enquanto a banda tocava Tom, todo o público cantava desafinado e erguendo os copos de cerveja: “dentro dos meus braços os abraços hão de ser milhões de abraços; apertado assim, colado assim, calado assim; abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim; que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. Nós seguíamos o coro, em pé, com os braços dele envolvendo a minha cintura, enquanto balançávamos nossos corpos no ritmo da música e daquela sinestesia sinistra que nos envolvia, especialmente por saber que, qualquer que fosse a história escrita a partir daquele dia, necessariamente envolveria saudade (por paradoxo ou ironia da sinopse de uma sitcom de humor duvidoso).

Há histórias que a gente só descobre o fim escrevendo, pois não se sustentam em uma crônica. Mas, assim como Bandeira escreveu inúmeras, levando Drummond a reunir algumas em uma coletânea em homenagem ao centenário de nascimento do Bardo, estou disposta a transformar em prosa cada uma das histórias envolvendo o largo e lindo sorriso da cadeira ao lado, para quem olhei curiosamente ao som da música tema da Disney tocada pela banda de jazz e admirei mentalmente todas as semelhanças que flutuavam ao nosso redor.

Apesar de serem os primeiros abraços, espero que sejam milhões. Apertados, colados e calados, como compuseram Tom e Vinícius (este último, um dos Sabiás da Crônica), porque tão raro é o encaixe, assim como as semelhanças. Uma pena a distância da estrada que nos separa dos abraços, da descoberta de qual será o fim dessa história e em qual gênero literário encaixaremos o texto. Para todos os efeitos, canto bem baixinho o pedido de Marisa: entre tanta gente chata e sem nenhuma graça, você veio; por isso, não vá embora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O que precede

 

Nós, românticos de plantão, costumamos fantasiar sobre o que vai acontecer após determinado evento. O que acontece depois da primeira conversa, do primeiro encontro, do primeiro beijo. Como vai se sentir o coração depois das primeiras juras de amor, ou mesmo o quão partido ele estará depois do término. Aos lamentos do pós, Marisa Monte dedicou uma canção inteira, prometendo, com sua singular voz, que “haverá de ser feliz também, depois”.

Eu sempre quero escrever depois que acontece algo, bom ou ruim, porque é a hora em que eu já tenho material o suficiente pra desenvolver alguma prosa. Apesar do depois ser interessante, por acontecer após o rascunho de um começo e servir de adubo à imaginação, acho que os românticos versistas dão pouca importância ao que precede. Se nós pararmos pra analisar com cuidado, o antes tem a beleza do abstrato e guarda uma infinidade de possibilidades de bordado com aquela linha vermelha toda emaranhada.

Os preparativos no banho antes do primeiro encontro, o nervosismo antes de entrar no carro com ele pela primeira vez, a troca de olhares tímida e conectada antes do primeiro beijo, as expressões faciais antes de descobrir uma porção de semelhanças, o desajeitado entrelaçar de dedos antes de se sentir à vontade para andar de mãos dadas.

O que vem antes de cada evento parece um sentimento de que estamos tateando no escuro, mas sem perder a coragem de continuar dando novos passos. Só é possível descobrir que a caminhada será boa se estivermos sob a sombra da iminência, para, então, iluminar a nossa história após cada novo passo dado.

É bonito de ver o que precede as três palavras, antes de elas serem ditas. A conexão sublime e silenciosa dos olhares, acompanhada por dois sorrisos bestas e uma ventania na barriga. Os pensamentos recorrentes de estranhamento e questionamentos internos: “é cedo demais para essa frase?”. A vontade incessante de conversar com ele, os pensamentos recorrentes sobre a sorte de tê-lo encontrado, a felicidade doce e inusitada de começar a escrever uma nova crônica. A leve espera pelo bom dia de manhã, e pela conversa rotineira no fim do dia. Os novos planos sobre o hoje, o amanhã, e o depois de amanhã, respeitando o calendário e enfrentando um amanhecer de cada vez. A tranquilidade de ser eu mesma, sem apreensão ou amarras. A troca das três palavras por “sub-sinônimos” como “te adoro” ou “eu gosto muito, muito de ti”. A criação de neologismos estranhos para escrever um texto inteiro dedicado ao que precede, porque a frase está na ponta da língua, mas ainda não foi dita. A gente é diferente quando sente, por isso a troca das três palavras por algo parecido. Aquilo que eu sinto por você parece ser maior, e tem sido uma delícia apreciar o que precede.

domingo, 14 de agosto de 2022

Compasso

Se no pentagrama é onde o compasso abriga cada nota, o parágrafo é o compasso da palavra. Escolhendo o compasso, define-se o ritmo da melodia, os passos da dança e a emoção das palavras que serão escritas. Com um pentagrama em branco, sem compasso definido e sem ler há tempos partituras, resta apreciar Mozart enquanto reparo bem nos detalhes amadeirados e barrocos ao fundo da igreja, ou mesmo nas unhas roídas da cadeira ao lado. Como cheguei até ali? É o que vamos descobrir.

Numa segunda-feira qualquer de junho, bati o ponto no trabalho antes da hora e saí correndo para o Theatro da Paz, na esperança de conseguir um dos cinquenta ingressos para o concerto de jazz exclusivo que ocorreria naquele dia. Cheguei na bilheteria e o avistei de longe, vestindo uma camisa social azul clara, com as mangas dobradas em um visual despojado. Envergonhada, fui direto para o final da fila fingindo que não o vi, apesar de admirar o sorriso e simpatizar com sua inteligência desde o primeiro dia de aula na faculdade.

O funcionário da bilheteria surgiu, de camisa preta e calça jeans, informando a todos que os cinquenta ingressos tinham terminado. Ele olhou pra mim, riu discretamente e disse: é, parece que ficamos para fora. Por dentro, agradeci pela gentileza do cumprimento, pois eu estava tímida demais para ir até ele; por fora, ri também e lamentei pelo azar de não chegarmos mais cedo.

Naquela coincidência residiu o primeiro “e se?”. Um fim de tarde na minha esquina favorita na cidade, o Bar do Parque funcionava lindamente (como sempre, desde 1904), o céu azul Paysandu denunciava que não choveria à noite. Ele perguntou o que eu faria depois dali, falei que iria trabalhar e perguntei quais eram os planos dele. Ele respondeu que deixou tudo organizado no escritório, para ficar livre após o concerto. Demos de ombros e nos despedimos (apesar de, por dentro, torcer fortemente para que ele me convidasse para tomar uma gelada no charmoso Bar do Parque à nossa frente).

Por mensagem, tomei coragem de comentar com ele que aconteceria um concerto no sábado, na reabertura de uma casa tradicional da cidade. Ele respondeu que a banda de jazz tocaria no Theatro na quinta-feira, e combinamos que ele me avisaria o horário que fosse comprar o ingresso dele, para que eu conseguisse comprar o meu também. Era uma programação individual dele, e minha, mas que, de certa forma, poderia ser feita na companhia um do outro. Acabou que ele comprou dois ingressos, e eu também... e assistimos ao concerto juntos. Terminamos a noite conversando no Bar do Parque, ao som de música popular brasileira, mas infelizmente sem Adriana Calcanhotto ou Marisa Monte, porque não deu tempo.

Na semana seguinte, lá estávamos nós, assistindo ao concerto da orquestra sinfônica em uma das muitas igrejas lindas de Belém, analisando a arquitetura barroca do lugar, a trilha sonora de Mozart e as unhas terrivelmente roídas ao meu lado. O tipo de programação que costumo fazer sozinha, mas que felizmente estava acompanhada pelo simpático sorriso que costumava sentar na primeira carteira da sala de aula.

Eu não sabia que ele gostava de música clássica, tampouco que sabia tanto sobre Belém, muito menos que nossos beijos se encaixariam como se tivessem sido escritos em uma partitura. Existem muitos lados bons de conhecer pela segunda vez alguém, um deles é descobrir se eu estava certa sobre as impressões que tive sobre ele quando o conheci pela primeira vez. É como se o segundo ato do concerto fosse absolutamente inesperado, mas igualmente agradável. Terminamos a noite apreciando o rio e as embarcações iluminadas que por ele passaram, entre cabelos embaraçados pelo vento e sorrisos charmosos, aproveitando o que nos proporcionou a coincidência.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Disforia

 

Parece que, do centro para fora, estou congelando. Ao mesmo tempo, de fora para dentro, estou derretendo. Um nó na garganta que não se desfaz. Eu não sei o porquê, não sei o gatilho. Só acontece, do nada, sem aviso prévio ou explicação posterior. Quando deito na cama, parece que meu corpo e o colchão têm um ímã tão forte que não consigo levantar, mesmo que eu queira fazer coisas, quaisquer que sejam. É como se estivesse subindo a serra à noite com a estrada cheia de neblina, tremendo de frio e morrendo de calor simultaneamente. Parece que as larvas me corroem por dentro e não consigo me livrar delas, mesmo que tente ininterruptamente.

Eu me esforço pra ser feliz. Escuto as músicas que costumava gostar, leio os livros pelos quais costumava me interessar, faço planos que em tempos normais me dariam tesão em realizar. Mas continuo apática. Catatônica. Gelada e quente. Trêmula da cabeça aos pés. Sem conseguir sequer chorar ou dar um passo adiante. É um querer da morte, mas sem morrer. Uma singela sensação de inexistência ou de sumiço.

Quando lembro daquela pessoa que costumava ser falante e espontânea, desconheço-a. Parece que foi outra encarnação, ou simplesmente um personagem que criei e matei dentro de mim enforcada por esse nó de marinheiro. Eu deveria estar feliz, mas acho que não sei mais. A vida está simpática e agradável, eu é que me perdi. Estou dentro de um redemoinho de mim mesma. Sou incapaz de avançar ou de terminar as coisas. Como este texto, que deixo pela metade, antes mesmo de chegar à ansiedade.

(dia/mês/ano)

Outro dia, mesma sensação.

Há quase uma semana com o choro engasgado, em um blackout de felicidade. Enxergo apenas círculos concêntricos em tons de preto e escuridão, como quando era criança e esfregava os olhos até ter essa sensação. Em alguns momentos, sei o porquê do choro. Em outros, não consigo explicar e procuro o primeiro motivo que estiver à vista. Problemas que até duas semanas atrás eram apenas incômodos, nos últimos tempos têm sido dementadores. Racionalmente, tento explicar para mim mesma que para deixar de ver o escuro basta abrir os olhos. Não consigo. Pálpebras costuradas por uma linha invisível.

Hoje tomava um sorvete em um local aberto. O sorvete derretia sem parar, mais rápido que o normal. Minha língua nervosamente tentava conter as gotas de chocolate escorrendo pelos meus dedos, mas ainda que eu tentasse lamber por todos os lados, quando estava secando uma banda, a outra insistia em ser mais veloz. Olhei para o sorvete e pensei: sou eu. Enquanto derreto por um lado, tento secar o outro, mas a verdade é que estou inteira banhada de chocolate, com a casquinha amolecida e chocha, o guardanapo enxarcado e inutilizável, tentando conter o inevitável.

Já não tenho me esforçado para ouvir música e raramente acho que estou bonita. Poucos amigos me sobraram e não sinto vontade de procurar novos. Se a depressão fosse os estados da matéria, depois de derreter, o natural é que eu evapore de mim mesma. Virei então um zumbi que anda por todos os lados, cheio de culpa e remorso, sem lembrar da sensação da esperança preenchendo minimamente o coração.  

“Pra onde você está olhando? O que você está pensando?”. Para lugar nenhum, em nada. Olhando tão fixamente que a vista embaça e a cabeça faz eco. Tão silêncio que escuto o barulho da marcha das formigas. Tão solitária que não aguento mais minha própria voz. Tão engasgada que está pra faltar o ar. Espero que tão logo falte, de um jeito que eu evapore tão bem que nunca mais seja capaz de condensar novamente. Ainda não tive coragem de mudar a temperatura, mas torço bastante para que a meteorologia falhe e a onda de calor intenso chegue sem avisar, derretendo sorvetes e evaporando de vez o que não serve mais.

Daqui a pouco faço 27, existe uma expectativa nesse número quando se trata de fins de itinerários. Tomei três gotas em uma colher de chá, mas não adiantou tanto. De toda forma, é hora de tentar dormir.

(dia/mês/ano)

Vou continuar?