sábado, 3 de maio de 2025

Parco detalhe

 

Eu já passei por essa esquina um milhão de vezes. Dirigindo, a pé, de carona, no ônibus, por debaixo da terra, voando, invisível... Já passei por aqui e, apesar de achar que já tinha visto de cabo a rabo todos os arbustos distribuídos por ela, eu sabia que faltava alguma coisa para que fôssemos verdadeiramente íntimas. Foi aí que na terça-feira à noite, entre o expediente do dia e o que se alongaria pela madrugada, ouvi com todas as letras a palavra que explicava as percepções que vivenciei todas as vezes que passei pela avenida (e por todos os cantos em que pus os pés).

Foi como um raio caindo em minha cabeça, uma explosão de luz que explicou minhas sombras, até mesmo aquelas sobre as quais eu nunca tinha ouvido falar, mas as sentia intensamente, numa confusão de pensamentos emaranhados que se atropelam a vida inteira, competindo pela minha atenção e interesse, enquanto desejo poder fazer o infinito nesta única existência que ganhei de presente.

Os dias que vieram em seguida foram acompanhados da consciência após o lampejo: tudo agora fazia sentido naquela avenida, e foi por isso que eu revisitei as memórias de cada centímetro de calçada e de asfalto, prestando atenção em cores que não sei o nome, como Adriana Calcanhotto em Esquadros. Eu quero chegar antes, pra sinalizar o estar de cada coisa, fazer prosa sobre o pouco que muito me comove, enquanto tento alcançar meus simultâneos e incansáveis pensamentos que buscam propor um prognóstico dos porquês de eu finalmente entender que não me caibo. Não foi uma escolha, sou deveras e transbordo.

A sinfonia das buzinas para os carros em fila dupla; o casal sentado no boteco que serve prato feito, se deliciando em sorrisos ao encontrar um sintoma de novo amor aos tantos anos; o barulho dos sacos de lixo se movimentando pelo vento das pessoas passando ao lado; o pai que segura na mão do filho miúdo e explica que pra atravessar a rua é preciso passar pela faixa de pedestres. Cada parco detalhe é especial. Observo tudo ao mesmo tempo e guardo o que seria inútil, mas fica bonito quando coloco em formato de história. Absorvo profundamente, como uma overdose da minha sensibilidade e que não escolhi viver: simplesmente sou, simplesmente vejo, simplesmente escrevo. Como que para sobreviver a mim, mas também para conseguir respirar nesse mundo, que me parece tudo e tanto desde sempre.

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela, quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
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