Em
mais um dos devaneios sobre a decoração dos poucos metros quadrados que me
cabem no inflacionado mercado imobiliário de São Paulo, decidi que queria tirar
a televisão do rack verde da sala e pendurar na parede do quarto, bem em frente
à cama. Peguei emprestada a furadeira do zelador do prédio e decidi eu mesma
fazer o serviço, autoconfiante de que tinha aprendido a manusear a ferramenta
adequadamente quando um dos homens que passou pela minha vida me ensinou.
Uma
barulheira danada, o pó voando no meu rosto e era preciso colocar muita força
nos braços pra broca conseguir perfurar o azulejo e alcançar a parede... Era
meio cena de filme segurar a furadeira enquanto ele apoiava meus cotovelos e direcionava
o que eu deveria fazer – e sou adepta de
roteirizar minhas comédias românticas. A verdade é que naquele dia usei só pra
fazer charme, mas deixei o resto do trabalho com ele: fiz apenas um dos quatro
furos da cantoneira do banheiro. Satisfeitíssima por ter vivido uma cena clichê
e por ter aprendido uma nova habilidade (preciso saber que posso fazer sozinha,
mas não tenho problema em deixar fazerem o trabalho pesado por mim).
Fechando
os parênteses que contextualizam a história, voltemos à televisão no quarto. Era
um dia qualquer, daqueles em que a minha cabeça corre meia maratona sem preparo
físico, enquanto eu fico sentada em frente ao computador resolvendo o que tiver
que resolver. Num ímpeto de hiperatividade, decidi que só o que seria capaz de
acalmar meus nervos era pendurar a televisão no quarto (como se não fossem
suficientes os ansiolíticos).
Medi
tudo com a trena, marquei com lápis onde deveria furar e mãos à obra. Foi um rátatatá
como na música dos Engenheiros do Hawaii, encaixei as buchas nos furos, fixei os
respectivos parafusos e voilà: coloquei o suporte na parede. Suada e descabelada,
mas muito faceira pela minha aclamada autossuficiência. Ao acomodar a televisão,
tive a dramática surpresa de que qualquer filme me causaria torcicolo, já que a
TV estava torta como a Torre de Pisa.
Fiquei
irritada, mas decidi que botaria a televisão reta num outro dia, porque naquele
eu precisava resolver um bocado de outras coisas e sequer tinha brocas
sobrando para novos furos. Deixei a furadeira do zelador no chão do quarto, interfonei explicando a situação pra ele e pedi um pouquinho de paciência.
Três
semanas se passaram e não comprei novas brocas, pois estive submersa nos
outros problemas rotineiros da vida: gripe inesperada; cachorro com tosse de
madrugada; idas ao supermercado porque não antevi que o básico ia acabar; cozinhar
o almoço da semana pra não comer fora todo dia; lavar a roupa antes que
acumule; estar sempre de unhas feitas e não cair na tentação de roer por causa
da ansiedade; pintar o cabelo sozinha com tinta de farmácia num surto de domingo;
resolver a resistência do chuveiro que queimou do nada; a cafeteira que quebrou
e atrasaram pra entregar a nova; estar presente na vida dos amigos pra eles
não acharem que fui abduzida; levar o cachorro pra passear... tudo isso enquanto
tento não deixar de ler por prazer, marco yoga aos domingos (e falto
alternadamente), faço mesversário de pagamento da academia sem dar as caras um
dia sequer, tento manter minimamente uma dieta e faço de tudo pra nunca estar amarrotada.
Três
semanas depois, desisti de ajeitar a TV. Devolvi a furadeira pro zelador e
aceitei que ela vai ficar torta. A minha unha está pintada, mas a do mindinho quebrou.
Eu passei toda a roupa, mas a bolsa pesada no ombro amassou a camisa de seda. Usei
maquiagem e continuei com cara de cansada, saí com antecedência e me atrasei
por causa do trânsito... A infinita tentativa de equilibrar perfeitamente os
pratos e a constante falha de deixá-los cair na minha cabeça e me frustrar logo
em seguida, acompanhada da sensação de que alguém poderia ter ido comprar as três
brocas que eu precisava e eu resolveria facilmente o problema da TV torta.
A questão é que não há um alguém sobressalente pra resolver as pequenezas do dia a dia por mim, especialmente por viver longe dos meus na cidade em que a música popular brasileira não cansa de cantar solidão. Nem tudo é entregue por delivery, outro dia gastei quarenta só porque precisava de um adaptador de tomada com urgência. Chico cantou que “tem nada como um tempo após um contratempo”, mas tem épocas em que a vida inteira acaba sendo um contratempo. Resta aceitar a TV inclinada, a camisa amassada, a minha insuficiência e imperfeições que, honestamente, têm mais charme, autenticidade e bagagem do que meus antigos e enganosos discursos dizendo que me basto. Eu não me basto – e sou feliz por finalmente ter vivido essa dolorosa epifania.
