sábado, 7 de dezembro de 2024

Deveras

 

Como grande entusiasta dos amores espontâneos, tenho acompanhado de perto o desenrolar de algumas histórias que, aos olhos comuns, seriam simplesmente imprudência. Por ver o mundo pelas lentes do possível, meus conselhos costumam vir acompanhados da torcida pela aposta no improvável, porque a vida só acontece à flor da pele quando acompanhada de shots de coragem.

Às vezes a gente dá mais sorte no amor que nos jogos de azar, embora nunca tenha me ocorrido sem precisar lidar com o prejuízo e juntar os cacos depois. Carrego uma certa bagagem de experiência de campo para dar às palavras o tom que elas merecem, porque as paixões que me descontrolaram são as que fizeram eu ser como sou...  Mas após apostar muito alto e perder de lavada, cheguei à conclusão de que meu papel deve ser escrever sobre o amor, e não protagonizá-lo, porque quem já se feriu presta mais atenção. Compartilhei essas conclusões pela primeira vez durante uma conversa no bar tradicional que fica na esquina da Ipiranga com a São João, para onde levei um encontro que precisava conhecer o charme do Brasil e uma boa caipirinha.

Enquanto ríamos das histórias um do outro, vestindo nossas respectivas personas de primeiro date, ele perguntou como uma mulher como eu poderia continuar solteira. Dentre as múltiplas respostas possíveis, respondi que sou entusiasta dos amores espontâneos e inesperados, mas que não são pra mim. Escrevo sobre eles, dando toques de ficção às histórias que pessoas envolvidas pelos brilhos nos olhos e pelo tesão das primeiras vezes me contaram. Queria ter a coragem de viver a intensidade de Bethânia, que prega a prudência, mas se permite eclipsar da realidade depois de ter você. Como animal arisco domesticado esquece o risco, decidi covardemente não ser domesticada e me proteger entre as folhas de word, disposta a escrever sobre as intensas histórias alheias, mas jamais me entregar novamente à possibilidade de não dar pé.

Existe um certo desconforto no vácuo do quase, e um medo avassalador de nunca mais conseguir escrever com a mesma emoção das vezes em que fui arrebatada ao ponto de enxergar e efetivamente compreender cada verso de olha. Daquele jeito que o texto flui tanto quanto os beijos que deslizam entre a boca e o pescoço, quando no durante; ou quando as palavras saem com tanta facilidade para o teclado do computador quanto as lágrimas que escorrem pelas maçãs do rosto, quando no depois.

Muito embora escrever seja essencialmente treino e técnica, não é recomendado ao cronista descolorir-se ao ponto do texto perder o carisma; Ou do amor perder a esperança; Ou da prosa ficar insossa sem a idiotice do frio na barriga. Escrever é ativar o modo deveras sobre a vida, sob pena de se limitar a transcrever de forma oca o alheio. Da língua à Língua, tudo o que já coloquei no papel passou pelas nuances das mais absurdas utopias da mpb, que me fizeram acreditar naquela sensação de finalmente ter encontrado ou fatalmente ter perdido, tudo isso transformado em melodia pelas conhecidas vozes dos imortais que verbalizam a poesia brasileira sob o som dos acordes de violões de nylon.

Enquanto pensava sobre tudo isso, respondi à pergunta feita, mergulhada naqueles olhos verdes enquadrados pelos óculos também verdes (minha cor favorita), e na esquina mais musicada de Sampa: continuo solteira porque sou entusiasta dos amores espontâneos, mas decidi apenas escrever sobre eles e não vivê-los.

Paradoxalmente, lamentei porque era provável que não nos víssemos mais, já que muito em breve ele embarcaria para Roma; analisei todos os detalhes do cenário e dos tons de verde que ele usava e que se embaraçavam com a natureza; pensei em transformar em texto a caipirinha na esquina da Ipiranga com a São João, a caminhada no fim de tarde pelo Ibirapuera enquanto o dia quente dava espaço para o sereno do entardecer, o beijo em frente ao lago do parque e ao som do nado dos cisnes negros que faziam uma arruaça qualquer. Respondi à pergunta sabendo que escreveria sobre todas aquelas memórias fotografadas com o olhar, porque transformar a vida em prosa é inerente ao hábito de observar e, naquele dia, tive a sorte de reunir bons detalhes (do derredor, do devir e da minha derradeira contradição).

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