Coado, de supermercado, com bastante
açúcar. Há muito tempo, nos dias cheios, pedia para minha mãe fazê-lo para que eu conseguisse
enfrentar noites mais cheias ainda. Pra ser honesta, eu não entendia muito bem
o sabor, mas muito me interessava o estado de alerta que a cafeína me causava.
Coado no filtro de papel, sem muitos segredos ou especificidades, sem saber se
era arábico ou sei lá o quê... temperado apenas com o amor de mãe.
Aos poucos, passei a apreciar o cheiro criado
pelo contato da água fervendo com o pó preto. Aprendi a tomar por gosto, ainda
com bastante açúcar. Provei uma versão em uma máquina de sachê. Passou a ser
meu combustível para as manhãs no escritório. O ritual diário era, antes de tudo,
ligar a máquina e tomar uma dose do longo, com três colheres de açúcar. Depois,
mais um após o almoço. Às vezes, um intermediário, dependendo do dia.
Novo ano, nova vida. Ele, sempre
comigo. Novamente, sem máquina, recorrendo ao coado “de mamãe”, temperado com
amor. Ao longo do ano, uma novidade: a tal da Nespresso. Ganhei do meu tio, até
batizei! Inês, trocadilho infame. Uma máquina toda novinha e cheia de balangandãs.
Um milhão de tipos de cápsulas, 100% arábica. Virou minha melhor amiga
imediatamente. Escrevemos vários artigos juntas, madrugamos juntas. O cheiro do
líquido que saía dela era maravilhoso. Passei a apreciar cada detalhe daquela
nova experiência. A escolha da cápsula compatível com o sabor que eu estava
implorando para sentir, a xícara que mais agradaria o meu humor do dia. Um novo
ritual. Um pouco maluca, é verdade.
Certo dia, meados de agosto, levei a Inês
para passear. Queria agradar os membros do grupo de pesquisa que eu iria
começar a orientar. Comprei cápsulas Pilão (sou estudante, não dava pra bancar
cápsulas Nespresso) e copos simpáticos. Liguei a máquina na tomada... Saiu
fumaça e ela começou a engasgar. Minha Inês estava passando mal. Não deu outra,
cheguei em casa e ela deu o último suspiro: queimou de vez. Nenhum membro do
grupo tomou um gole sequer da alegria que a Inês me proporcionava. Eu também
não tomei mais, ela se foi. Chorei a madrugada inteira. Em alguns momentos,
abracei a Inês de verdade enquanto chorava. Éramos amigas, companheiras de
madrugadas, minha nova mania. Não posso negar que chorar pelo óbito da máquina
de café parece doidice. Mas chorei. Chorei verdadeiramente. A geringonça foi um
presente, daqueles bem dados, com amor.
Passado o luto, superei. Comecei a
pensar na minha nova amiga, para substituir a Inês. A novidade do momento,
comprada no cartão de crédito e parcelada de algumas vezes. Ganhei até um brinde
cheio de cápsulas! Eu não poderia ter feito esse gasto, por isso Lucas a
batizou de Teimosa. Chamei as amigas para conhecê-la. Comprei garrafinhas de
água com gás para tomar um cálice antes do espresso. Bebia um atrás do outro,
com pitadas de taquicardia. Algumas vezes por vício, outras por necessidade. Eu
e Teimosa somos companheiras, embora minhas cápsulas originais tenham acabado e
eu tenha me rendido às imitações de supermercado.
Até o dia em que provei os grãos
selecionados... Aprendi que a água não pode ferver – queima o café –, devemos
mantê-la a uma temperatura de 96ºC, que é quando as bolinhas começam a aparecer
no fundo da chaleira. Se a bolinha sobe, já era, vai queimar o café, oxidar, e
aí vem o amargo. Na verdade, não sei se oxida. Estou repetindo as palavras curiosas
que o Alfredo disse na loja. O café de supermercado é bastante moído e por isso
é um pó bem pó, mas o selecionado... Ah! Tem uma textura diferente, dá pra
sentir o grão como esfoliante na pele. Eu poderia enfiar a minha cabeça dentro de um saco de grãos selecionados.
É preciso molhar o filtro com um pouco
de água, não lembro o motivo, mas aprendi isso também. Agora só sei que faço,
porque o Alfredo disse. Deixo a água até o ponto das bolinhas embaixo da
chaleira, molho o coador, coloco o café depois. O entrelaçamento da água quente
– não fervida – com o grão de café selecionado resulta na sinestesia que parece
a união de dois corpos apaixonados, cujo gozo marrom avermelhado escorre pelo
coador...!
Aprendi que a cor do café especial não
é tão escura, porque escuro é o café de supermercado, por algum motivo que
também não lembro direito. Só sei que o café especial é doce, o amargo decorre
do café ruim. Aprendi muitas coisas, mas não recordo de todas. Queria um livro sobre café, pra lembrar de
tudo. Sou dessas péssimas pessoas que lembram do que viram escrito nos livros,
mas não lembram muito bem do que foi dito, porque eu estava muito ocupada
ficando estarrecida com todas aquelas informações novas e interessantes (e com
a minha ignorância).
O açúcar, que era muito, aos poucos foi
reduzido até chegar a zero. No espresso, ainda faz muita diferença e faço
careta. No coado, já aprendi a tomar sem reclamar. No coado de selecionados,
bebo admirando o doce natural do grão (chique!).
De todo o aprendizado que tive em um ano, o maior de
todos foi que o café com tempero de amor de mãe nunca vai perder o valor pra
mim. Nos dias de pressa, recorrerei à Teimosa. Nos dias de contemplação,
aguardo os grãos selecionados. Nos dias comuns, fico com o café de supermercado,
até porque não tenho poderio financeiro para manter hábitos caros. Nos dias como
hoje, penso que amadureci em um ano tanto quanto aprendi sobre cafés: bastante,
mas sem entender direito o que estou fazendo, porque, afinal, nem tudo está
escrito nos livros; enfrentando dias doces e amargos, com careta ou sem, mas
sobrevivendo; aproveitando a sinestesia que é esse vício que virou amor, sem
esquecer de apreciar cada segundo, seja do bom ou do ruim, porque a água passa rapidamente pelo com
a dor e logo a gente esfria.
