quinta-feira, 25 de março de 2021

Mudança

Eu não aguento mais morar aqui. Poderia ter domicílio em outro lugar, mas este corpo não me comporta mais. Seja pelo comportamento subversivo e negligente que tive comigo e com meus limites durante todos esses anos, ou pela sucessão de caldos que tomei nesse mar revolto, ou mesmo por ser fraco demais para encarar a dureza que é esse viver. Não aguento mais morar nesse corpo. Se algum dia minha mente espúria viajou pelo espaço e sonhou com voos mais altos que os que dou, não consigo recordar. Da profundidade deste poço é quase impossível ver a luz, que parece do tamanho de uma estrela, mesmo sabendo que de perto é como se fosse um sol. Sei lá, nada tenho a ver com essas coisas de astronomia e a astrologia também não tem me ajudado, embora eu saiba que a troca de umas letras muda muita coisa entre essas áreas do conhecimento. Mas realmente não me importo. Estou descompromissado, desculpem-me os astrólogos e os astrônomos, ou até mesmo os astronautas. A questão é que eu não aguento mais morar aqui: nesse corpo. Talvez se eu tivesse descido ao mundo no corpo de outrem, fosse mais feliz. Ou se tivesse descido no meu corpo mesmo, mas soubesse dar a ele a vida que ele merece. A questão é que eu não sei. Sou grato pelos meus braços e pernas, boca, olhos e nariz. Ouvidos. Todas essas partes do corpo que a gente aprende na escola e com a mãe. Sou grato por tudo. Não quero ser ingrato. Mas é necessário desabafar: não adianta ter uma caixa de ferramentas ponta de linha se não sei usar. Pensei que fosse resolver o problema se mudasse de cidade, estado ou país, só que não há como me mudar de mim. E aí é que está. A casa está bagunçada, mas a casa sou eu e o morador também. Nos desenlaces dessa bagunça, sou incapaz de organizar minimamente o ambiente. Os eletrodomésticos estão todos com problemas. O coração bate rápido demais mesmo quando estou deitado, a cabeça fica acelerada até quando estou dormindo, meu bigode não para de crescer... não que isso seja um problema, em si, mas a casa fica meio suja. Estou com problema de fiação elétrica, porque não há mais luz em quase todos os compartimentos. A desorganização desse texto reflete a bagunça que está na casa. Nem chorar eu consigo, porque entope os canos. Voltando ao início: eu não me caibo mais. O problema é que não sei como resolver. Não tenho fiador para um novo aluguel. Já chamei assistência técnica, mas não está adiantando. Esse corpo não cabe mais minha morada. Pensei em ser nômade, mas pra isso precisaria virar espírito, e a gente vira espírito quando morre. Não sei. Não entendo de religiões também. (Coleção das coisas que não sei: astronomia, astrologia, religiões, y otras cositas más). Não tenho vergonha de dizer que não sei, mas parece que é pecado nesse mundo de sabidos que a gente vive. Opa. Esbarrei de novo nas religiões. Não há como escrever sem tropeçar em uma coisa ou noutra, e aí a gente volta para a bagunça que está esta casa. Se existisse um multiverso, quem eu seria se tivesse tomado outras decisões? Ainda caberia aqui neste corpo e nessa vida? Queria ser visitado por essa outra versão, pra pelo menos ele me dizer se daria certo em outra dimensão, ou se vim fadado à bagunça que é ser eu, com esse bigode horrível, que cresce sem disciplina ou lógica. A vida não tem lógica, as pessoas morrem do dia pra noite e aí simplesmente acabou. Ficam os outros sofrendo pela ausência, procurando justificativa, mas não há. Eu sinto saudades e medo. Saudades de quem perdi e medo de perder outros. Aí bagunça tudo, né? Tropeço na poeira toda dessa casa, mas é isso que dá não lavar a louça desde quando comecei a sujar. Percebi que a pia estava cheia, não procurei como lavar, agora ninguém consegue dar jeito, nem mesmo os especialistas em limpeza de pia, de cozinha, de casa, de tudo. Está uma bagunça. Insuportável. Há anos não tiro o lixo no dia da coleta. A culpa é toda minha, porque fui negligente, bagunceiro, sem noção. Agora estou aqui, procurando no catálogo pra onde me mudar, sabendo que não dá pra me mudar de mim. Essa casa com problema na fiação elétrica está me dando nos nervos, estou no escuro falando coisa com coisa para ninguém ler. Minha mão treme enquanto escuto o barulho do tec-tec-tec do notebook. Olho tão fixamente que meu olhar embaça. Falando em embaçado, hoje limpei o espelho, mas não adiantou: não adianta tentar me ver se já não me enxergo. Vou parando por aqui. Já falei demais. A questão toda é que essa casa não me cabe mais.

domingo, 21 de março de 2021

Dia Mundial da Poesia



De unhas roídas e coração apertado,
Tento reencontrar em versos meus avessos
Submersa em caos e dúvidas
Só consigo me descobrir
Nessa metalinguagem
Sempre fui de prosa, 
Mas hoje deixo uns versos
Refluxos do meu reflexo
Em sílabas
A minha tônica



Dia 21/03 é o Dia Mundial da Poesia.
Por isso, hoje, dei um tempo às crônicas.