Acordei
cambaleando de sono, porque demorei a apagar a luminária na noite anterior. A
roupa do dia – quase nunca separada com antecedência, mas já mentalizada minimamente
– estava escondida pelo quarto e, certamente, ainda amarrotada do pós-lavagem
na máquina de lavar velha e enguiçada, que mais parece uma escola de samba fora
do ritmo. Separei com pressa a saia midi e saí a procurar a camisa azul celeste
de alfaiataria, que, apesar do calor que faz às margens da Linha do Equador,
transmite a seriedade que preciso para uma segunda-feira de audiência no Fórum
Cível.
Às três
porradas (pelo cansaço e pela pressa), montei a tábua de passar roupa e misturei
um tanto de água no fim de amaciante que restava no borrifador. Peguei a
camisa, estendi sobre a tábua e liguei o ferro de passar na tomada. Nada muito
emocionante, tudo com a normalidade de uma segunda-feira que chegou após um
final de semana sentada à frente do computador. Mais um dia da fase adulta,
menos um dia de vida. Mais um dia na corda bamba de semear sonhos e colher burn
out.
Comecei
passando as costas da camisa, até ficarem bem esticadas, porque odeio roupa amarrotada.
Logo escuto a voz de mãe que dizia antigamente: “andas toda amarrotada por aí,
o que vão pensar da tua mãe?”. Muitas camadas de problematizações sobre a frase
e o patriarcado, mas restou a mensagem de uma mãe cuidadosa que me ensinou a sair
de casa alinhada.
Terminei
as costas, encaixei o ombro da camisa no semicírculo da tábua e passei o lado
direito, depois o lado esquerdo. Sacudi levemente a roupa, para analisar o
andamento da tarefa feita toscamente, e percebi que estava muito pior do que eu
imaginava: ao tentar arrumar um lado, o outro inevitavelmente amarrotou, as
costas da camisa voltaram quase à estaca zero, as mangas permaneciam enrugadas
e a gola estava semelhante a uma pintura em craquelê.
Olhei
para o relógio na tela do celular, a hora já havia avançado e eu não
conseguiria mais tomar café, mas era uma questão de honra sair de casa com a
camisa bem passada. Respirei fundo, chamei cinco palavrões mentalmente,
coloquei o espresso para preparar na máquina de café e voltei à tábua. Nesse
estica e puxa, percebi que é difícil demais manter a camisa inteira lisa, assim
como todas as mangas da vida alinhadas.
A gente
perde o sono e deixa de comer direito pra arrumar de um lado, aí o corpo grita
e te põe doente. A doença atrasa o andamento das obrigações, mas é preciso
descansar. Se a gente descansa, vem a mosca da culpa atrás da orelha sussurrar:
você está fodido, o tempo está correndo, olha só em quantos prazos fatais você
vai tropeçar se não passar logo a manga dessa camisa. Aí manda mensagem pra
psiquiatra, claro, porque o remédio está acabando, e marca a sessão de terapia
da semana que vem. Só que nessa coisa toda acabei de perceber que já faz dois
meses que não corro na praça, então estou sem exercícios físicos, e engordei, e
piorou a rinite e o ronco, e não tenho sono de qualidade, até porque há muito
não durmo direito. Nem fiz a cirurgia do desvio de septo, mas também não me
importo. De madrugada, ao invés de cumprir tarefas, escrevo crônica. A porra da
camisa lá: toda amarrotada. Só porque hoje, justamente hoje, resolvi que queria
usar alfaiataria pra parecer séria e respeitável.
Não há
quem passe a minha roupa, assim como não há quem viva a minha vida. Sou obrigada,
todos os dias, a tentar alinhar os emaranhados do tecido. E como vão os affairs?
Sei lá, cara. Se foram para algum lugar, eu não soube o paradeiro. Também não
quero saber. O único itinerário que me interessa é aquele cujo destino sou eu
mesma.
Deslizei
o ferro pelo lado esquerdo da camisa, chegando até a ponta da manga. Passei de
novo, de novo, de novo, até ficar ótimo. Quando analisei, voilà: o lado
direito estava todo escroto de novo. Respira fundo, agradece pelo dia bom que
vem pela frente e mentaliza que você vai passar o dia todo sorrindo e sendo
espirituosa, engraçada, gentil e com pensamento rápido. Um deslize de frase
lacônica já se desdobra em suposições. Será que são os hormônios? É aquele
período lá do mês? São tantos questionamentos importantes sobre o humor de uma
mulher! Energia lá em cima, cacete.
Meu café
já até esfriou a essa altura, porque começou aquela dorzinha de gastrite por
tomar café de barriga vazia. Esqueci também de beber água. Acabei de lembrar
que não respondi aquela mensagem da semana passada, tampouco atualizei minha
amiga sobre o último date que tive, também não me posicionei nas redes
sociais sobre a pauta importante do dia que está todo mundo falando e eu não
faço ideia do que seja. Tudo passou tão rápido, que o mês já acabou e eu nem li
aquele livro sobre finanças que prometi que leria ano passado, nem bebi dois
goles de poesia no feriado, dormi no meio do episódio da nova série que está
bombando (e não saberei comentar, porque não sei do que se trata). Acabei não
dando o ar da minha graça pelos botecos da metrópole e, com os poucos que
falei, fiquei cansada só de pensar.
Eu só
queria um Cheddar McMelt e escutar música pop sem precisar unir uma
sílaba na outra, mas fui tão atropelada pelo mês quanto a camisa azul pelo
ferro de passar. Como a camisa azul celeste, toda vez que tento arrumar um lado
da minha vida, o outro amarrota. Talvez eu não saiba passar roupa, ou talvez
simplesmente viver seja tão confuso quanto se manter alinhado o dia todo. Até
porque, no fim do dia, a camisa já sujou, o delineado já escorreu, o carisma
evaporou... e eu ainda estou aqui, sentada na beira da cama e olhando para a
tábua de passar roupa, com a camisa azul amassada e mais uma segunda-feira de
sobrevivência pela frente. Amarrotada ou não, hei de encará-la.