terça-feira, 18 de outubro de 2022

Camisa azul celeste

 

Acordei cambaleando de sono, porque demorei a apagar a luminária na noite anterior. A roupa do dia – quase nunca separada com antecedência, mas já mentalizada minimamente – estava escondida pelo quarto e, certamente, ainda amarrotada do pós-lavagem na máquina de lavar velha e enguiçada, que mais parece uma escola de samba fora do ritmo. Separei com pressa a saia midi e saí a procurar a camisa azul celeste de alfaiataria, que, apesar do calor que faz às margens da Linha do Equador, transmite a seriedade que preciso para uma segunda-feira de audiência no Fórum Cível.

Às três porradas (pelo cansaço e pela pressa), montei a tábua de passar roupa e misturei um tanto de água no fim de amaciante que restava no borrifador. Peguei a camisa, estendi sobre a tábua e liguei o ferro de passar na tomada. Nada muito emocionante, tudo com a normalidade de uma segunda-feira que chegou após um final de semana sentada à frente do computador. Mais um dia da fase adulta, menos um dia de vida. Mais um dia na corda bamba de semear sonhos e colher burn out.

Comecei passando as costas da camisa, até ficarem bem esticadas, porque odeio roupa amarrotada. Logo escuto a voz de mãe que dizia antigamente: “andas toda amarrotada por aí, o que vão pensar da tua mãe?”. Muitas camadas de problematizações sobre a frase e o patriarcado, mas restou a mensagem de uma mãe cuidadosa que me ensinou a sair de casa alinhada.

Terminei as costas, encaixei o ombro da camisa no semicírculo da tábua e passei o lado direito, depois o lado esquerdo. Sacudi levemente a roupa, para analisar o andamento da tarefa feita toscamente, e percebi que estava muito pior do que eu imaginava: ao tentar arrumar um lado, o outro inevitavelmente amarrotou, as costas da camisa voltaram quase à estaca zero, as mangas permaneciam enrugadas e a gola estava semelhante a uma pintura em craquelê.

Olhei para o relógio na tela do celular, a hora já havia avançado e eu não conseguiria mais tomar café, mas era uma questão de honra sair de casa com a camisa bem passada. Respirei fundo, chamei cinco palavrões mentalmente, coloquei o espresso para preparar na máquina de café e voltei à tábua. Nesse estica e puxa, percebi que é difícil demais manter a camisa inteira lisa, assim como todas as mangas da vida alinhadas.

A gente perde o sono e deixa de comer direito pra arrumar de um lado, aí o corpo grita e te põe doente. A doença atrasa o andamento das obrigações, mas é preciso descansar. Se a gente descansa, vem a mosca da culpa atrás da orelha sussurrar: você está fodido, o tempo está correndo, olha só em quantos prazos fatais você vai tropeçar se não passar logo a manga dessa camisa. Aí manda mensagem pra psiquiatra, claro, porque o remédio está acabando, e marca a sessão de terapia da semana que vem. Só que nessa coisa toda acabei de perceber que já faz dois meses que não corro na praça, então estou sem exercícios físicos, e engordei, e piorou a rinite e o ronco, e não tenho sono de qualidade, até porque há muito não durmo direito. Nem fiz a cirurgia do desvio de septo, mas também não me importo. De madrugada, ao invés de cumprir tarefas, escrevo crônica. A porra da camisa lá: toda amarrotada. Só porque hoje, justamente hoje, resolvi que queria usar alfaiataria pra parecer séria e respeitável.

Não há quem passe a minha roupa, assim como não há quem viva a minha vida. Sou obrigada, todos os dias, a tentar alinhar os emaranhados do tecido. E como vão os affairs? Sei lá, cara. Se foram para algum lugar, eu não soube o paradeiro. Também não quero saber. O único itinerário que me interessa é aquele cujo destino sou eu mesma.

Deslizei o ferro pelo lado esquerdo da camisa, chegando até a ponta da manga. Passei de novo, de novo, de novo, até ficar ótimo. Quando analisei, voilà: o lado direito estava todo escroto de novo. Respira fundo, agradece pelo dia bom que vem pela frente e mentaliza que você vai passar o dia todo sorrindo e sendo espirituosa, engraçada, gentil e com pensamento rápido. Um deslize de frase lacônica já se desdobra em suposições. Será que são os hormônios? É aquele período lá do mês? São tantos questionamentos importantes sobre o humor de uma mulher! Energia lá em cima, cacete.

Meu café já até esfriou a essa altura, porque começou aquela dorzinha de gastrite por tomar café de barriga vazia. Esqueci também de beber água. Acabei de lembrar que não respondi aquela mensagem da semana passada, tampouco atualizei minha amiga sobre o último date que tive, também não me posicionei nas redes sociais sobre a pauta importante do dia que está todo mundo falando e eu não faço ideia do que seja. Tudo passou tão rápido, que o mês já acabou e eu nem li aquele livro sobre finanças que prometi que leria ano passado, nem bebi dois goles de poesia no feriado, dormi no meio do episódio da nova série que está bombando (e não saberei comentar, porque não sei do que se trata). Acabei não dando o ar da minha graça pelos botecos da metrópole e, com os poucos que falei, fiquei cansada só de pensar.

Eu só queria um Cheddar McMelt e escutar música pop sem precisar unir uma sílaba na outra, mas fui tão atropelada pelo mês quanto a camisa azul pelo ferro de passar. Como a camisa azul celeste, toda vez que tento arrumar um lado da minha vida, o outro amarrota. Talvez eu não saiba passar roupa, ou talvez simplesmente viver seja tão confuso quanto se manter alinhado o dia todo. Até porque, no fim do dia, a camisa já sujou, o delineado já escorreu, o carisma evaporou... e eu ainda estou aqui, sentada na beira da cama e olhando para a tábua de passar roupa, com a camisa azul amassada e mais uma segunda-feira de sobrevivência pela frente. Amarrotada ou não, hei de encará-la.