sábado, 23 de novembro de 2013

Rabisco


Traço a linha dos olhos, não, ver o mundo desse ângulo não vai ser bom. Apago. Começo a delinear o formato da cabeça, mas, pensando bem, uma cabeça pequena pode limitar os pensamentos dela. Apago. Decido começar pela boca, mas percebo que é muito importante tomar cuidado em como vou desenhá-la, coisas importantes sairão de lá. Apago. Desenho as orelhas, muito, muito cuidado, ela pode ouvir alguém dizer para ela desacreditar de seus sonhos e achar que é verdade. Apago. 
Folha em branco, novamente. 
É difícil desenhar e saber que a sua perspectiva vai ser a essência de alguém (principalmente quando esse alguém é você mesmo). Difícil pensar que um errinho, por mais simples que seja, poderá levar o desenho à lata de lixo. Amassado, rasgado, triturado. Decido começar do zero, mais uma chance: lá vamos nós. Abuso da borracha. Começo a acreditar que é inexequível alcançar a plenitude desejada. 
Com o tempo, percebi que chegar à perfeição é uma fatuidade humana. A beleza se faz da hamartia, dos borrões e da lágrima seca. O belo não se constrói por si, precisa do feio para fazer-se ser. Sem o miasma, como sentir o aroma das flores? Ninguém é monolítico, a doçura de ser quem é está exatamente no irascível. O recrudescimento da beleza está na apoteose do rabisco. Belo é quando o lápis desliza e erra, mas depois risca por cima e consegue consertar, sem apagar a cicatriz. 
Tentativas frustradas de auto retratos psicológicos fizeram-me perceber que nunca conseguirei terminar um auto retrato sequer. Nunca chegarei à uma conclusão, pois todos estamos em constante metamorfose. Não importa quantos traços estejam errados no desenho, as pupilas continuarão sendo iridescentes. Cansei de apagar. Cansei de usar a borracha. Doravante, todos os riscos errôneos serão mantidos, para lembrar-me onde não devo mais riscar. 
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