sábado, 16 de setembro de 2023

Coda

Quando esperava nas coxias pelo transcorrer do pas-de-deux, de sapatilhas calçadas e figurino no corpo, sentia arrepiar até o último fio de cabelo toda vez que o casal começava a dançar a coda no palco. Como corpo de baile ou plateia, a coda é um dos momentos mais eletrizantes dos pas-de-deux nos ballets de repertório. Normalmente, nesse momento os bailarinos são desafiados a ultrapassar os limites do próprio corpo, com saltos sequenciais em círculo ou trinta e dois fouettés (aquele movimento em que a bailarina fica girando em torno de si e usando a própria perna como um chicote).

Há um ano, coloquei o celular em italiano para conviver com o idioma. Ao ouvir música no Spotify, fui colocar uma canção “na fila” e me deparei com a expressão “aggiungi alla coda”. Entendi que seria, então, a música a ser tocada na sequência, o que me remeteu imediatamente à sequência dos pas-de-deux clássicos: o casal dança junto, cada um dos bailarinos dança sozinhos as suas variações, depois os dois retornam para a coda, num momento de ápice antes da finalização do duo.

Entre a coda da linguagem da dança e a coda do Spotify, fui obrigada a pesquisar no dicionário italiano o que significa a palavra, cuja tradução literal é “cauda”. Para a vida, traduzi a coda como aquele trecho que vem em seguida, com sensações de êxtase e desafios. O público nunca sabe o que esperar da coda (mesmo que saiba o ballet de repertório de cor e salteado, cada par tem suas próprias adaptações), mas a bailarina sabe exatamente o que vai fazer, porque já treinou mil e uma vezes. É possível que tropece ou que não consiga trincar o duplo fouetté, mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, acreditando que ensaiou a vida inteira para viver aquele momento, utilizando os desafios todos para ganhar a admiração do público.

Para conquistar a plateia com a delicadeza e elegância de seus braços, a bailarina tem que lembrar que é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre. Não importam os calos e a tendinite, ela deve encher o calcanhar de esparadrapo e spray analgésico, o palco não se importa com as coxias, mesmo sabendo que elas existem. É momento de sorrir e encarar os desafios desta coda, porque cada clássico de repertório vivido até aqui dominou por completo meu coração.

Sinto como se estivesse nas coxias do Theatro São Pedro, com os cabelos puxados em um coque bem preso, ofegante e apreensiva, tomada por um frio na barriga indescritível, porém empolgada e excitada pelo que viria em seguida, enquanto meu partner finaliza o seu trecho da coda, esperando ansiosamente pela minha entrada no palco. Nada a fazer, senão esquecer o medo, respirar fundo, colocar os dois pés no linóleo e sentir a luz amarela bater em meu rosto. Longe se vai sonhando demais, mas onde se chega assim? Exatamente aqui, onde estou. Entre passos e tropeços: eu, caçadora de mim*.

 

* Milton Nascimento estava na coda do Spotify, fator que certamente influenciou o conteúdo desta prosa. 


sábado, 9 de setembro de 2023

Quiçá

Desde cedo sentada na cadeira marfim acolchoada, evitando o sol com o blackout estendido e fugindo da música ambiente pelo atalho dos fones de ouvido, digitava minha solidão de pensamentos com o notebook ligado na tomada da cafeteria. O ponteiro já chegava quase ao quarto quadrante do relógio e inúmeras pessoas entraram e saíram pela porta do café.

Se antes estava vidrada no texto em espanhol que lia para fins acadêmicos, com o passar do dia, foi inevitável observar os movimentos das mesas e todas as possíveis histórias sendo escritas ali, diante de meu olhar descompromissado e, até então, também desinteressado. Tantos quases, indícios, finalizações e reconstruções podem morar dos lados opostos de cada uma das mesas.

À esquerda, sentou um casal bem bonito. Um homem alto e esguio, com a barba feita e usando camisa azul petróleo e óculos de grau quadrados, acompanhando um homem de estatura mediana, camisa verde musgo, olhos azuis e cabelos castanhos claros desembaraçados. Sentaram-se à mesa, apoiaram as mãos uma sobre a outra e começaram a tagarelar sobre a música ao vivo que começou de repente, tocando Beatles e Oasis (com todas as piadas intermediárias que envolvem as duas bandas de rock).

“Não, imagina! Não vai chegar mais ninguém, pode pegar a cadeira.”

Na verdade, estou esperando, não para sentar-se à mesa, talvez para caminhar, mas isso é uma outra história.

Um time de futsal de crianças cantando parabéns se sobrepôs à música ambiente. Todos antes dos dez, em faixas intermediárias, celebravam a vida de uma senhorinha de cabelos lilás, que usava um vestido estampado vermelho até os joelhos. As crianças disputavam assoprar a vela, mas o pai determinou que seria a garotinha menor a assoprar. A senhorinha sorria, feliz, pela nova idade e por estar rodeada pelo amor daqueles pequenos (netos, presumo).

Na diagonal, sentado na bancada de tomadas, um rapaz digitava em seu tablet. Também sozinho com seus pensamentos, ou acompanhado por quem lhe mandava mensagem, ou pela mulher que lhe abraçou pelas costas e lhe beijou a bochecha direita enquanto eu observava a cena. Ele virou um pouco assustado, guardou o celular atônito, abriu um sorriso amarelo e chamou o garçom. A conversa não andou bem, ao que parece, porque ela levantou chorando vinte minutos depois.

“Não, obrigada! Por enquanto, estou satisfeita”.

Não estava. Meus próprios quases, indícios, finalizações e reconstruções me trazem insatisfações que trancam minha garganta nessa tarde de sábado, mas fingi elegantemente que falava apenas da água com gás, gelo e limão. O garçom foi embora, atender alguém que consumisse mais e gastasse menos energia.

O casal ao lado estava calado, pensei que fosse mais uma daquelas histórias de duas pessoas que estão juntas há muitos anos e já não têm assunto. O homem comia camarões e a mulher bebia uma cerveja. Garçom! Eles querem muito uma colher (eles já haviam dito isso pelo menos umas trinta vezes, mas ninguém dava atenção para os dois, tampouco eles mesmos se davam atenção). Depois de comer e beber, resolveram falar, e aí falaram bastante. Eram amigos, tinham muita fofoca para colocar em dia e, no celular, alguns affairs para administrar no final de semana. Como eu, também odiaram quando começou a tocar Ed Sheeran. Ninguém aguenta mais Ed Sheeran, tampouco sabemos quem é o gerente do local, pois, segundo ele, “tem tanta gente estranha nesse lugar”. Eu não os conheço, escuto a conversa e participo mentalmente, como se fizesse parte dela.

Minha torta de limão chegou, estava linda! Pena que o chantilly estivesse duro, o creme de limão azedo e a massa precisasse de garfo e faca para se desfazer. Na mesa um pouco ali adiante ela parecia tão bonita e as amigas comiam tão alegremente. Talvez fosse mais sobre a conversa do que sobre a torta de limão, em silêncio não senti o mesmo sabor.

O garçom chegou para perguntar se estava tudo bem, respondi que sim. Ele indagou novamente, surpreendentemente insatisfeito com minha resposta: “lembra do Reginaldo Rossi? Você pode falar com o garçom”. Eu não estava num bar, tampouco queria conversar, queria só apreciar a movimentação dos casais, amigos e senhorinhas desconhecidos, enquanto lia meu texto e fazia algumas anotações aqui e ali. O garçom pressupôs que preciso conversar porque estou sozinha, pois de fato estou. Ou pela expressão de um grande talvez em minha testa, acentuada pelo franzir do cenho que escapou ao botox. Ou porque menti descaradamente ao dizer que estava satisfeita com meu quiçá e com a torta de limão. Ou mesmo porque a minha desconexão vai muito além do sinal fraco do Wi-Fi.

A gente cria certa simpatia pelo vai e vem, mas para todos os efeitos: “a conta, por favor”.

Preciso ir embora.

Não sei para onde.

Mas o quanto antes.