Quando esperava nas coxias pelo
transcorrer do pas-de-deux, de sapatilhas calçadas e figurino no corpo,
sentia arrepiar até o último fio de cabelo toda vez que o casal começava a dançar a coda
no palco. Como corpo de baile ou plateia, a coda é um dos momentos
mais eletrizantes dos pas-de-deux nos ballets de repertório.
Normalmente, nesse momento os bailarinos são desafiados a ultrapassar os
limites do próprio corpo, com saltos sequenciais em círculo ou trinta e dois fouettés
(aquele movimento em que a bailarina fica girando em torno de si e usando a própria perna
como um chicote).
Há um ano, coloquei o celular em italiano
para conviver com o idioma. Ao ouvir música no Spotify, fui colocar uma canção
“na fila” e me deparei com a expressão “aggiungi alla coda”.
Entendi que seria, então, a música a ser tocada na sequência, o que me remeteu
imediatamente à sequência dos pas-de-deux clássicos: o casal dança
junto, cada um dos bailarinos dança sozinhos as suas variações, depois os dois
retornam para a coda, num momento de ápice antes da finalização do duo.
Entre a coda da linguagem da dança
e a coda do Spotify, fui obrigada a pesquisar no dicionário
italiano o que significa a palavra, cuja tradução literal é “cauda”. Para a
vida, traduzi a coda como aquele trecho que vem em seguida, com
sensações de êxtase e desafios. O público nunca sabe o que esperar da coda (mesmo
que saiba o ballet de repertório de cor e salteado, cada par tem suas próprias
adaptações), mas a bailarina sabe exatamente o que vai fazer, porque já treinou
mil e uma vezes. É possível que tropece ou que não consiga trincar o duplo fouetté,
mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, acreditando
que ensaiou a vida inteira para viver aquele momento, utilizando os desafios todos
para ganhar a admiração do público.
Para conquistar a plateia com a delicadeza
e elegância de seus braços, a bailarina tem que lembrar que é preciso ter
manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre. Não importam os calos
e a tendinite, ela deve encher o calcanhar de esparadrapo e spray
analgésico, o palco não se importa com as coxias, mesmo sabendo que elas
existem. É momento de sorrir e encarar os desafios desta coda, porque
cada clássico de repertório vivido até aqui dominou por completo meu coração.
Sinto como se estivesse nas coxias do Theatro
São Pedro, com os cabelos puxados em um coque bem preso, ofegante e apreensiva, tomada por um frio na barriga indescritível, porém empolgada e excitada pelo que viria em seguida, enquanto meu partner
finaliza o seu trecho da coda, esperando ansiosamente pela minha entrada
no palco. Nada a fazer, senão esquecer o medo, respirar fundo, colocar
os dois pés no linóleo e sentir a luz amarela bater em meu rosto. Longe se
vai sonhando demais, mas onde se chega assim? Exatamente aqui, onde estou.
Entre passos e tropeços: eu, caçadora de mim*.
* Milton Nascimento estava na coda do Spotify, fator que certamente influenciou o conteúdo desta prosa.
