sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Ampulheta

 

No parque, à noite, resolveram caminhar para tomar um vento no rosto e conversar sobre a vida depois de um dia que poderia ter sido qualquer, mas não foi, pelas intercorrências costumeiras da rotina cosmopolita próxima à baleia de metal. Entre as árvores e sob da lua, durante desabafos, confidências e sinceras trocas de olhares, repartiram muito mais que um sanduíche natural e uma garrafa de suco de laranja, para remediar as longas horas sem comer e fugir da gastrite que persegue aqueles à beira dos trinta que esquecem das refeições e abusam do café espresso sem açúcar.

Existe muito mais no cuidado do que se pode confessar, e nos atos de serviço moram palavras de amor que ainda não nasceram, mas parecem prestes a, embora sobrevivam ao segundo presente, seguindo à risca o combinado de se aterem às recordações criadas e datadas. Às risadas leves. Às noites não dormidas. Às manhãs recém iluminadas pelo sol. Às tantas outras coisas quantas podem ser construídas enquanto a areia cai suavemente pela ampulheta que o destino surpreendentemente preparou.

  O vendedor ambulante passou sorrindo e cantando, oferecendo o brigadeiro meio amargo que vendia para ajudar a família. Cantarolando uma música de letra improvisada, acusou em voz alta o que estava nas entrelinhas de cada fala, abraço e beijo: o jeito dos dois se perceberem, ali, é diferente. Atípico como os anos bissextos. No balanço das árvores de uma noite quente, em frente ao lago, existe inegável química na surpresa que dança ao som das palavras musicadas e inventadas pelo homem desconhecido, que sensível e sutilmente notou haver se deparado com uma possível raridade entre as tantas histórias de amor que já ocuparam a tinta gasta pelos mais sonhadores poetas.

Acontece que o que se entrelaça à melodia da canção inventada é a trilha sonora de La La Land, representada pela infusão de cores primárias e pelo carinhoso adeus para se viver os próprios sonhos, tão belos quanto todo e qualquer romance, inclusive aqueles que viram prosas escritas de madrugada e inspiradas pelos flashbacks dos momentos já vividos. Who knows? I felt it from the first embrace I shared with you. Tão intenso quanto a valsa no planetário é o olhar fixo sob a lua minguante, seguido pelo sorriso desconsertado por ter se perdido no diálogo enquanto observava algo qualquer nela em silêncio.

Durante um longo suspiro após cuspir nos pixels as palavras que estavam entaladas, não há mais o que ser feito, senão agradecer aos astros pelo alinhamento dos planetas que proporcionou o (re)encontro, nesta ou em qualquer outra vida, para este ou qualquer outro capítulo. Agradecer, especialmente, pela areia que já escorreu pelo funil e pela preciosidade que ainda está na parte superior e que promete incríveis desdobramentos ao futuro próximo que, apesar de transitório, há de ser especial.

Especial nos silêncios confortáveis, na partilha da vida, nos bons dias antes das reuniões corporativas, nos dentes escovados simultaneamente em frente ao espelho do banheiro, nas mensagens dessincronizadas, nas risadas bobas antes de dormir, na tranquilidade de repousar a cabeça nos ombros um do outro acolhidos pela fusão do abraço, na preocupação mútua e genuína, no café espresso com essência de coco pela manhã, na camisa discretamente amarrotada e acompanhada pela tímida justificativa, na busca por experienciar e conhecer os mundos um do outro, no compartilhamento de playlists antigas disponíveis no ar retrô dos CDs, no cochilo durante o filme bom em casa, no riso contido durante o filme ruim no cinema. Em tudo e em tanto, no entanto, a despeito do escorrer da areia. Ou talvez justamente por ele. Ou talvez simplesmente não se saiba, mas que tudo isso antecede algo, é quase certo que sim, mirando em cheio naquelas específicas palavras que flertam com memórias doces e especiais, independentemente do porvir, mas que ficam marcadas justamente por aquilo que foi e é bom. A vida é efêmera, permanente é a memória.