domingo, 27 de outubro de 2024

Todavia


É domingo e as crianças brincam na chuva, no meio do bairro da Bela Vista. Escuto os gritos e as risadas, e de certa forma me sinto satisfeita por saber que ainda existe esse tipo de vivência, a despeito de São Paulo. Enquanto isso, encaro minha xícara de café de cápsula, tentando calcular há quanto tempo não passo um café pelo coador de verdade.

Com a dor me deparo, antiga aliada dos remédios que controlam meus súbitos porquês e velha conhecida. Sempre mais dura quando na frente da tela em branco com letras profundamente minhas sendo escritas, embora nesses momentos fluam mais bonitas e eternas, como são as palavras guardadas na intimidade e aquelas que evaporam na lembrança.

Respiro fundo e tudo está igual, apesar de cada todavia. Andando pela rua dia desses, quase adotei um cachorrinho em uma feira, mas me contive para poder pensar melhor; quase comprei um tênis superfaturado que namoro há mais de ano, mas fiz as contas e decidi deixar pra depois; quase aceitei menos que mereço, mas dei um passo atrás para seguir adiante. A cada quase que me aparece, percebo que venho sendo cercada pela esperada maturidade dos quase trinta, que nada tem a ver com covardia, mas sim com a coragem de me permitir escolher. Eu poderia fazer todas essas coisas, simplesmente porque quero, posso e estão ao meu alcance, mas desisti logo antes, pela velha máxima de que cada escolha carrega uma bagagem de consequências (e minhas bagagens têm sido pesadas já faz um tempo).

Olho para a parede branca decorada com novos quadros e tudo está igual, num infeliz paradoxo. Lá fora as crianças continuam soltando risadas agudas enquanto brincam na chuva; as pessoas continuam correndo entre as baldeações do metrô; eu continuo preocupada porque amanhã é segunda-feira e já encarei minha to do list; a louça continua acumulada, enquanto tento dar um jeito no restante da faxina da casa; os passarinhos continuam cantando, sufocados pela poluição como se fossem fumantes incorrigíveis; várias reticências, que implicam na continuidade infinita de tudo o que já é, sem nada a acrescentar, porque não existe infinito mais um.

Todavia, tudo por aqui, embora igual, está bem diferente. Não adotei o cachorro, não comprei o tênis e não aceitei. Não há dúvidas de que esse processo terapêutico que todo mundo fala tem funcionado (mesmo aos trancos e barrancos) na minha cabeça bagunçada e que há muito perdeu o fio da meada. O lado bom de tudo isso é que, a cada novo arco do personagem, os espectadores acham que era um cliffhanger. Todavia, devo confessar que não é, apesar de ser um ótimo recurso narrativo.