domingo, 15 de dezembro de 2024

Esotérico

Todas as consultas que fiz ao tarot erraram. Não sei exatamente no que acredito, mas tento me apegar a qualquer informação aleatória sobre o futuro, porque minha ansiedade não me permite ter a calma necessária pra esperar pra descobrir. Foi assim que fui atrás de saber o que o tarot tinha a dizer sobre aquele evidente perigo que estava sentado à minha frente, usando camisa básica escura e falando sobre histórias e ambições que eu esperava serem de autoria do homem que um dia imaginei como o da minha vida (o que eu não sabia, é que estava sendo apresentada a uma nova história, cheia de reviravoltas).  

Acontece que, como nem tudo são flores, diante da iminência do adeus não havia outra resposta senão o não definitivo, ainda que no meio disso fosse possível enxergar tantos aceites mútuos. Nos meses anteriores ao dia em que efetivamente o encontrei, por aventura e curiosidade consultei o oráculo e a resposta foi bem clara ao me preparar para o que viria pela frente: caminhos fechados para o amor no ano que viria. Quando o conheci, ciente do que me adiantou o oráculo, escolhi viver o momento, sabendo que ele terminaria e seria só uma boa memória. Só que quando a gente resolve mergulhar tão profundamente no agora, e o agora tem um sorriso tão bem desenhado e úmido de cerveja como aquele do outro lado da mesa, é muito difícil aceitar simplesmente voltar para a terra firme. Verdade seja dita, desde o primeiro dia, eu já estava perdida.

Foi aí que, balançada, procurei a resposta no tarot, na esperança de que o sinistro me adiantasse que haveria uma reviravolta capaz de assegurar minha arriscada aposta. O tarot me avisou que era pra ir com calma, que não daria certo e que eu deveria me proteger. Só que, a essa altura, eu já estava despida e ofegante. Despida de medo (também de roupas), ofegante porque meu coração já acelerava ao vê-lo (e por todo o adjacente que sempre acompanhava a vista).

Resolvi assumir para mim que o misticismo estava absolutamente equivocado. Qualquer que fosse a força inominada do sobrenatural que me deu aquelas respostas, definitivamente estava errada. Se as veredas do amor não iam se abrir, escolhi com coragem desbravá-las. Se era pra eu ir com calma, resolvi pagar pra ver e viver tudo de uma vez. Desde a respiração tranquila ao pé do ouvido enquanto só se ouve o barulho do ventilador de madrugada, até jogar pelos ares os planos e refazer tudo do zero, tendo como ponto de partida uma única certeza: o que há de mais sobrenatural na vida é a conexão entre os seres humanos, e isso só acontece de verdade algumas vezes nessa nossa breve travessia.

Na iminência de acabar a areia que está escorrendo pela cintura da ampulheta, sinto o coração apertar de medo do porvir e da ausência. É como se o oráculo e o tarot sussurrassem debochadamente que me avisaram e eu me recusei a ouvir por pura teimosia e arrogância. Se conselho fosse bom, seria dado de graça. Mas paguei por ambas as respostas místicas e não acreditei nelas, porque apostei na completa neblina de um futuro que não conheço as linhas, tudo porque cresci escrevendo histórias de amor e acho que sou petulante o bastante pra driblar o destino e escolher como vou escrever a minha. No fim do dia, foi uma afronta ao que é invisível, embora o causo em si provoque riso se contado na entonação certa (que é, particularmente, minha especialidade diante da tragédia).

Todas as vezes em que estou com medo, tento convencer a mim mesma de que existem vários cases de sucesso; que hoje em dia não é tão difícil quanto antes porque agora temos novos artifícios; que um dia vai ser bonito de contar como a gente conseguiu mesmo que tenha sido tão difícil enfrentar uma ponta à outra do mesmo continente. Só que tropeço em dúvidas e esbarro em receios, esses que me fazem lembrar do que me disseram o tarot e o oráculo, mas tive a ousadia de fingir que não ouvi.

Às tantas da madrugada, sob o pretexto de trabalhar no sofá, acabei em mais uma daquelas vezes em que me perco nas palavras pra expressar o que dói, enxergando segurança apenas nas letras digitadas no teclado do computador (que é onde costumo me encontrar, para além de qualquer lugar no mapa, em que pese sempre perdida em meus devaneios). Até que nem tanto esotérico assim é o decidir, porque a escolha é sobretudo humana – especialmente quando já se desconfia que o caminho é uma emboscada, já que aí é simplesmente uma escolha burra, de quem sabe que vai sofrer, mas deliberadamente opta por rir na cara do perigo. Ao fim e ao cabo, torço pra que o amor seja mundano o suficiente pra que, no futuro, eu possa dançar diante das cartas de tarot, dizendo a elas umas poucas e boas por terem me causado todo esse alvoroço sentimental ao errar a resposta óbvia de que nós havíamos nos encontrado para não mais nos desencontrar. Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas, o oráculo e o tarot... Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz... ou, para minha sorte ou azar, talvez o transcendente e estivesse certo sobre meu tiro no escuro.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Deveras

 

Como grande entusiasta dos amores espontâneos, tenho acompanhado de perto o desenrolar de algumas histórias que, aos olhos comuns, seriam simplesmente imprudência. Por ver o mundo pelas lentes do possível, meus conselhos costumam vir acompanhados da torcida pela aposta no improvável, porque a vida só acontece à flor da pele quando acompanhada de shots de coragem.

Às vezes a gente dá mais sorte no amor que nos jogos de azar, embora nunca tenha me ocorrido sem precisar lidar com o prejuízo e juntar os cacos depois. Carrego uma certa bagagem de experiência de campo para dar às palavras o tom que elas merecem, porque as paixões que me descontrolaram são as que fizeram eu ser como sou...  Mas após apostar muito alto e perder de lavada, cheguei à conclusão de que meu papel deve ser escrever sobre o amor, e não protagonizá-lo, porque quem já se feriu presta mais atenção. Compartilhei essas conclusões pela primeira vez durante uma conversa no bar tradicional que fica na esquina da Ipiranga com a São João, para onde levei um encontro que precisava conhecer o charme do Brasil e uma boa caipirinha.

Enquanto ríamos das histórias um do outro, vestindo nossas respectivas personas de primeiro date, ele perguntou como uma mulher como eu poderia continuar solteira. Dentre as múltiplas respostas possíveis, respondi que sou entusiasta dos amores espontâneos e inesperados, mas que não são pra mim. Escrevo sobre eles, dando toques de ficção às histórias que pessoas envolvidas pelos brilhos nos olhos e pelo tesão das primeiras vezes me contaram. Queria ter a coragem de viver a intensidade de Bethânia, que prega a prudência, mas se permite eclipsar da realidade depois de ter você. Como animal arisco domesticado esquece o risco, decidi covardemente não ser domesticada e me proteger entre as folhas de word, disposta a escrever sobre as intensas histórias alheias, mas jamais me entregar novamente à possibilidade de não dar pé.

Existe um certo desconforto no vácuo do quase, e um medo avassalador de nunca mais conseguir escrever com a mesma emoção das vezes em que fui arrebatada ao ponto de enxergar e efetivamente compreender cada verso de olha. Daquele jeito que o texto flui tanto quanto os beijos que deslizam entre a boca e o pescoço, quando no durante; ou quando as palavras saem com tanta facilidade para o teclado do computador quanto as lágrimas que escorrem pelas maçãs do rosto, quando no depois.

Muito embora escrever seja essencialmente treino e técnica, não é recomendado ao cronista descolorir-se ao ponto do texto perder o carisma; Ou do amor perder a esperança; Ou da prosa ficar insossa sem a idiotice do frio na barriga. Escrever é ativar o modo deveras sobre a vida, sob pena de se limitar a transcrever de forma oca o alheio. Da língua à Língua, tudo o que já coloquei no papel passou pelas nuances das mais absurdas utopias da mpb, que me fizeram acreditar naquela sensação de finalmente ter encontrado ou fatalmente ter perdido, tudo isso transformado em melodia pelas conhecidas vozes dos imortais que verbalizam a poesia brasileira sob o som dos acordes de violões de nylon.

Enquanto pensava sobre tudo isso, respondi à pergunta feita, mergulhada naqueles olhos verdes enquadrados pelos óculos também verdes (minha cor favorita), e na esquina mais musicada de Sampa: continuo solteira porque sou entusiasta dos amores espontâneos, mas decidi apenas escrever sobre eles e não vivê-los.

Paradoxalmente, lamentei porque era provável que não nos víssemos mais, já que muito em breve ele embarcaria para Roma; analisei todos os detalhes do cenário e dos tons de verde que ele usava e que se embaraçavam com a natureza; pensei em transformar em texto a caipirinha na esquina da Ipiranga com a São João, a caminhada no fim de tarde pelo Ibirapuera enquanto o dia quente dava espaço para o sereno do entardecer, o beijo em frente ao lago do parque e ao som do nado dos cisnes negros que faziam uma arruaça qualquer. Respondi à pergunta sabendo que escreveria sobre todas aquelas memórias fotografadas com o olhar, porque transformar a vida em prosa é inerente ao hábito de observar e, naquele dia, tive a sorte de reunir bons detalhes (do derredor, do devir e da minha derradeira contradição).