sábado, 20 de junho de 2020

Poda

Quantas pedrinhas preciso jogar ao longo da floresta para um dia, quem sabe, encontrar o caminho de volta para casa? Quantas micro lembranças de quem fui se perderam para que eu conseguisse chegar a quem estou? O verbo ser foi deixado do lado de fora da caixa, que se tornou um cubículo de repressão do verbo estar, conjugado na primeira pessoa do singular. Cada vez menor, ela não tem dado conta de guardar um volume que constantemente sente vontade de escapar.
O riso frouxo e a espontaneidade foram as primeiras pedrinhas deixadas para trás, junto dos cabelos ruivos com a nuca tingida de cor-de-rosa. Em uma autoenganação constante de que seria necessário entrar no cubo e que um dia acostumaria com as suas dimensões. Acontece que eu, que nunca fui claustrofóbica, começo a sentir falta de ar e suspeitar que não caibo mais.
As metáforas nas pontas dos dedos foram substituídas por jargões formais e os neologismos deram lugar à repetição. O sentimento de ser única no mundo, em minhas nuances e sonhos que nunca conheci, evaporou. As crises existenciais da adolescência, despejadas sempre no mesmo lugar, no entanto, ainda estão aqui. O que sei é que, a cada dia que passa, tenho mais receio de expor as metáforas, em qualquer lugar que seja.
Quanto mais intimista essa prosa fica, menos chances tem de ser lida por alguém. Ela deve ficar fora da caixa, em um lugar que ninguém conhece. Quanto mais distante da caixa, mais íntimo, porque dentro dela cabe apenas a versão robotizada e calculada de alguém que num dia longínquo sonhou fazer a diferença. Na ânsia de alçar voos compatíveis com o tamanho de minhas asas, nem percebi quando foi feita a poda. Agora, como uma calopsita, não estou presa na gaiola, mas também não consigo voar longe como um dia imaginei. E lá se foram dez anos.
Quanto da gente a gente perde pelo meio do caminho? Mesmo sem saber o destino, ou fingindo que sabemos, mas tropeçando cada vez mais nos galhos secos e pedras, sem folhas caídas para amortecer a queda. Quando acabaram as pedrinhas, comecei a jogar migalhas de pão para achar o caminho de volta, mas os passarinhos comeram e não consigo reencontrar a trilha. Talvez seja um caminho sem volta e a vida realmente seja estar perdido na floresta andando em círculos. Não haverá reencontro, nem volta para casa. É a vida real. A casa nova é aqui, agora, entre quatro minúsculas paredes de doces tão apetitosos quanto enganosos, porque o resto dessa fábula todo mundo já conhece.


Mais uma crise existencial para a história desse blog que,
em maio de 2020, completou 10 anos.
Considero este um texto comemorativo à década do
De Boa com Debora.

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