Toca o terceiro sino, a orquestra no
fosso anuncia o início do segundo ato e a fumaça toma conta do palco. Vestidas
de figurinos românticos brancos, as Willis aguardam nas coxias a abertura das
cortinas e o início do ato. Chamado por Myrtha, o corpo de baile entra em cena
e sincronamente se entrelaça entre pas de bourrees e arabesques. Em êxtase, o
público aguarda o tão esperado pas-de-deux de Giselle e Albrecht, embalado pelo
adagio de Adolphe Adam.
Ela entra no palco, deslizando no
linóleo e com os braços cruzados na altura da cintura. A música, tão lenta
quanto as palavras dessas linhas, exige da primeira bailarina a resistência de
lutar contra a gravidade. A sustentação da perna na altura da orelha requer a doação
de uma vida de dedicação. Quanto mais devagar, maior a resistência. Quanto
maior a resistência, maior a leveza. Assim segue o adagio: da barra ao centro
da sala espelhada, dos ensaios ao espetáculo. Os tutus românticos brancos
flutuam entre a arte e a força.
Se crescer é um adagio, a sustentação
no centro sem o partner demora anos para acontecer, mas é necessário treinar diariamente.
Mesmo que a música soe lentamente aos ouvidos da plateia e a coreografia exija
todo o suor da bailarina, ela deve permanecer impassível, leve. A linha tênue
entre a firmeza e o rarefeito mora nos músculos contraídos em cada movimento,
mas também no semblante de quem está nas pontas dos pés.
A plateia quer performance e beleza,
não importando os calos nos calcanhares e as dores no fim do dia. Se crescer é
um adagio, o público compra o ingresso do espetáculo, mas não quer presenciar as
quedas, pois ela não faz parte da noite de gala. Por isso todas as horas a fio
na sala de espelhos, na escrivaninha entre os livros, à frente dos pixels do
computador, dentro do labirinto de pensamentos situado no último andar dos
camarins.
Subir nas pontas é doloroso, embora belo.
Viver é dançar um adagio todos os dias nos bastidores para, quem sabe um dia, pisar
no palco do teatro da esquina de casa, imaginando que é o Theatro Bolshoi. O
collant está enxarcado há anos, a meia calça está surrada e o coque já se
despenteou, mas há muito o que fazer. Há muita vida pra dançar e muitos repertórios
para coreografar. Crescer requer resistência, aulas, ensaios, vontade, força e
leveza. A plateia não pode descobrir quanta força faz a bailarina ao saltar um
grand jeté, nem quantas noites passou em claro lendo livros para construir
quinze páginas de pensamentos.
Ela nunca estará satisfeita com o ponché
a cento e cinquenta graus no centro, porque ainda faltam trinta. O público
admira, mas esperava pelos cento e oitenta graus. Crescer é a busca diária
pelos cento e oitenta, mesmo quando o corpo não responde mais aos estímulos, as
luzes das salas se apagaram e os mestres que a formaram foram embora. Ninguém
sabe tudo o que ela fez para chegar aos cento e cinquenta graus, ela mesma não
reconhece quantas vezes abriu mão de si pelo personagem que interpretaria no
dia do espetáculo.
Se crescer é um adagio, ocorre lentamente. Para não parar de dançar, é preciso
aprender que existem dias em que uma valsa vai cair melhor. Mais dançante e
mais alegre, comove a plateia tanto quanto: o público quer o belo, a força transparece
pela sutileza de um sorriso, que o adagio de Giselle – morta e sofrendo por
amor – não permite. Se crescer é um adagio, é preciso reconhecer que tampouco
importa para a plateia o que acontece nos bastidores, desde que o espetáculo
inicie ao final do terceiro sino. A única verdade que mora no palco é a vontade
da bailarina de continuar dançando. Por isso a música não para, nem a vida.
Bravo! Bravo! Bravo! Ela se entenderá com os calos depois que voltar para as
coxias.
