quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Corriqueiro

Fim do dia, daqueles tão cotidianos que sou incapaz de lembrar a data, cheguei em casa depois de mais um dia da rotina de estagiária e universitária, estacionei o carro na garagem e vi que a porta ao lado estava entreaberta. Era um atalho para o que um dia foi uma sala de aula, dentro de casa, construída por e para ele. Já tinha passado das dez, olhei pelo vão da porta e ele estava sentado mexendo no computador, entre papéis e pincéis, usando a típica camisa preta com um xis vermelho no peito, calça jeans surrada, sapatênis da Cavalera e cabelos ralos suavemente oleosos em um descompromissado moicano, indicando o quase encerrar de um dia puxado.

Entrei na sala, com minha bolsa lotada e usando as desengonçadas roupas sociais já amassadas ao fim do dia, sentei na terceira fileira de carteiras azuis, entre as brancas paredes coloridamente decoradas de acordo com as ideias tão características dele. O relógio era um vinil indicando as horas em piadas matemáticas, a pequena estante vermelha exibia a miniatura do Yoda e, bem ao lado, um boneco do Hulk gigante. Ele dizia que eram os seus opostos: por dentro, sábio; por fora, esquentado. Eu sempre ria, porque gostava de ouvir a piada toda vez que ela era repetida. Atrás dele, a lousa ainda rabiscada, também indicando que o dia estava chegando ao fim.

Perguntei a ele como havia sido o dia, ele disse que o de sempre. O “de sempre”, hoje, é uma crônica. Particularidades do dia-a-dia que só são percebidas quando já não mais existem. Eu fecho os olhos e tento lembrar de todos os detalhes da por ele tão sonhada sala de aula, com o nome dele na porta, construída tijolo por tijolo no terreno de casa, mas a lacuna entre o tempo e perda já não ajuda mais minha memória.

Naquele dia, eu disse que queria fazer mestrado (o que nunca foi um segredo), e estava em pânico pelo quase fim da graduação. Ele brevemente desviou os olhos da tela do computador, olhou pra mim com cara de riso. Eu disse:

- Faltam só dois anos! Já está quase acabando.

- Sim... “Só” isso. – disse ele, ainda em tom de gargalhada, aguardando o continuar daquela conversa sem pé, nem cabeça, para ver o que eu ia dizer.

- Ainda não publiquei nenhum artigo! E demora muito para os artigos serem aceitos! – eu insisti, sabia que algum conselho eu poderia extrair dali, mesmo sem saber à época que as frases revestidas de cotidiano hoje para mim seriam lições.

- Demora para serem aceitos, isso quando são... porque podem ser rejeitados. – respondeu, mas eu não entendi bem.

Hoje entendo melhor os nãos que a vida dá. Para artigos, para sonhos, para planos e para o viver. Ele terminou a conversa dizendo para eu ter calma, ainda havia muito tempo pela frente. Naquele dia, eu me senti incompreendida. Como havia muito tempo? Faltavam só dois anos. Em menos de dois anos, o avesso da vida me provou quanta vida há em pouco tempo. Eu não sabia, mas hoje, mais do que nunca, sei. Ansiosa vendo a linha de chegada a dois palmos de distância, fui confrontada com a sabedoria de quem já havia vivido aqueles passos que eu ainda estava dando. Gerúndio, gerúndio... às vezes soas tão bem, quando diante de um saudoso pretérito.

Lembro-me de procurá-lo nos corredores das escolas, para pedir cinco reais para o croissant e a coca-cola da hora do intervalo, ou para dar um abraço e receber um apertão malino nas bochechas. Lembro-me do cansaço dele ao fim do dia, jantando qualquer coisa que tivesse em casa e tentando não dormir logo para não ter a sensação de emendar um dia noutro. Lembro-me dele com pouca voz e dores nos pés, depois de um dia inteiro em pé e falando quase sem parar (hoje entendo perfeitamente o uso do microfone). Lembro-me dos pacotes de provas para corrigir e das noites em claro escrevendo novas apostilas de exercícios. Lembro-me de quando ele me dizia que havia conhecido novas metodologias ativas e que os alunos iriam adorar, ele fazia questão de explicar cada uma delas, ainda que eu não entendesse muito bem. Lembro-me do dia que ele foi paraninfo de uma turma na UFPA, escreveu um texto tão lindo e fez questão de ler em voz alta para mim.  

Lembro-me de todas as vezes que ele, o maior Professor da minha vida, tentou indicar para mim outras carreiras. Eu não entendia. Hoje entendo. Com muito menos romance, um pouco mais de maturidade e os primeiros anos de dolorosa ausência, enxergo a trajetória de esforço diário, aulas emendadas em todos os turnos do dia, estudo constante e as ininterruptas vontade e tentativa de fazer o melhor possível. Lembro-me com carinho do anel de formatura com a pedra azul, utilizado por ele todos os dias. Lembro-me do quebra-cabeças quase impossível de tentar encaixar aulas no ensino médio, aulas no ensino superior e um doutorado na Universidade de São Paulo. Eu não entendia. Hoje entendo.

Gostaria de reviver os fins de noite na sala de aula dentro de casa para enchê-lo de perguntas e para dizer: hoje entendo. Gostaria de saber o que ele tem a dizer sobre todas as dúvidas que voam em cima da minha cabeça, embora acredite que boa parte delas ele responderia com: “mas sabe o que é isso? É a vida”. Gostaria de vê-lo mais uma vez rodeado pelos papéis, usando a camisa preta com um xis vermelho no peito, recarregando pincéis ou entusiasmado fazendo novos planos (de aula e de vida).

 

Texto dedicado ao meu Professor e Pai, Aldo Vieira (in memoriam).

A sala está vazia neste 15/10, mas tenho a convicção de que ele está guardado nos corações daqueles que tiveram a oportunidade de sentar nas carteiras diante dele.

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