sexta-feira, 16 de julho de 2021

Concessionária

Quem quer comprar um carro zero quilômetro, vai à concessionária de veículos. Não há mistério quanto a isso. Para pagar, usa carta de crédito, compra à vista, parcelado... Não sei bem. Só sei que as pessoas olham, olham, olham. Perguntam, perguntam, perguntam. Após escolherem, pagam pelo carro e emplacamento. Dias depois, aparecem de novo e saem dirigindo o automóvel. Às vezes, decoram os carros com um laço imenso para os novos proprietários, o que eu, particularmente, acho bem cafona.

A concessionária tem carros para todos os gostos: desde os populares até os tops de linha, com motor de não sei quantos cavalos, teto solar, sistema de som integrado, botões no volante (acho chiquérrimo quando os carros têm botões no volante), quatro portas, vidros elétricos, diversas opções de cores. Comprar um carro é simples, desde que se tenha o dinheiro necessário. Ou seja, comprar um carro na concessionária significa que o adquirente já fez uma seleção prévia e busca um automóvel nunca antes utilizado, sem defeitos de fábrica, sem arranhões feitos pelos donos anteriores. Nada de seminovo. Nada de motor maquiado. Nada de correias antigas. Placa nova para estrear as multas, fragrância de carro novo sem ser daquelas que vendem nos postos de gasolina, pouco combustível no tanque para sair da loja. Os carros novos são, então, melhores. É lógico.

É exatamente por isso que não sei o porquê de eu estar aqui. Minhas lanternas estão quebradas ou queimadas, meus pneus estão carecas, estou sem estepe. Quando ligam meu motor, faço um barulho tremendo. Meu som não acende a luz, embora toque as músicas pelo bluetooth. Meu capô está queimado de sol, minhas portas estão arranhadas e gastas pelo tempo (a tinta preta não ajuda, qualquer grão de areia deixa meia dúzia de arranhões). Estou sem revisão há uns três anos e meu ar condicionado não resfria muito bem.

Ao lado dos carros zero quilômetro, sinto-me um calhambeque todo esculhambado. Não entendo o porquê de os curiosos insistirem em fazer test drive comigo. Eles aparecem, olham, olham, olham. Escolhem-me sem dizer o motivo e me colocam para rodar. Pela minha rua, pelo bairro, município afora. Estou seguindo itinerários nunca antes percorridos sem sequer saber o porquê de morar nessa concessionária, que claramente é incompatível com o que sou capaz de oferecer.

Sinto que a qualquer momento posso desmoronar. Não estou em condições de trilhar longos caminhos, levar as pessoas por inusitadas jornadas ou mesmo dividir a faixa de trânsito com os carros zero quilômetro. Não entendo o motivo de insistirem em me exibir junto aos carros de tinta brilhante e retrovisores bem pintados. Meu espelho está trincado, vejo meu passado de forma fragmentada e meu sensor de ré quebrou faz muito tempo. Não sei voltar atrás e quero ir adiante, embora eu ache que essas ruas bem asfaltadas não sejam o meu lugar, tampouco a concessionária é.

Meu sistema de som ainda funciona, ainda bem. Consigo captar os compradores pela poesia musicada, talvez. Toco boas melodias, embalo as viagens. Mesmo com o IPVA atrasado, colocam-me para rodar. Não entendo. Meu prazo se esgotou faz tempo, pedi prorrogação para o pagamento, qualquer dia serei pego em uma blitz e o motorista não poderá reclamar, pois sabia previamente. Aí vou para o curral, ficar ao lado dos meus: quebrados, desalinhados, com o imposto atrasado, com a tinta corroída pelo sol, vidros com a película gasta, sem teto solar. Mas insistem em me fazer morar naquela concessionária. Não vou dizer que não gosto. Eu gosto, só não entendo.

sábado, 3 de julho de 2021

Fosso

Entre o palco e a plateia, há o fosso. Apesar de não estar à vista de todos, muitas coisas acontecem por lá, começando pelo posicionamento da orquestra quando o palco é utilizado pelos bailarinos. Estes últimos, nas coxias, escondem o que não mostram no palco: as dores, bolhas, cansaço, figurinos pelo chão e sapatilhas velhas. Tudo o que não está no palco e na plateia passa imperceptível aos olhos dos admiradores.

É o idealizar do que é bonito às vezes, mas nem sempre. Dos instrumentos que entoam bonitas melodias, mas que também desafinam e quebram as cordas. Dos deslizes no linóleo e torcer dos tornozelos. Se tudo o que está no palco tem a pretensão de ser belo, o que está fora dele tem o único intuito de em algum momento ser exibido por lá, seja em som ou em coreografia. O que está no fosso e nas coxias não é ensaiado, especialmente quando o fosso está vazio.

As luzes se apagam e a música que anuncia o início de mais um espetáculo começa a tocar, criando uma sensação que só existe dentro do Theatro de detalhes áureos e teto cuidadosamente pincelado ao redor do lustre, registrando a herança da Belle Époque. As cortinas vermelhas começaram a se abrir lentamente, enquanto a cena já estava preparada em cima do palco. A plateia aguardava de olhos atentos a expressão da beleza em cima das sapatilhas, dos saltos flutuantes e giros impressionantes.

A plateia vai ao teatro para ver o que é bonito, mas pouco se importa com a dor por detrás das coxias, com o burburinho que faz a mente de cada um que contribui para o enredo ou com quantas vezes cada repertório precisou ser revivido para conquistar a sua atenção. O único objetivo dos pares de olhos sentados nas cadeiras enfileiradas do teatro é receber o que foi ensaiado para lhe ser entregue, num ato passivo de acreditar que é o centro da arte expressada enquanto os pipoqueiros sobrevivem do lado de fora da construção bela, porém elitista, que relembra um triste passado da exploração da borracha.

Nada na vida é belo. Nem mesmo o espetáculo. Nem mesmo o ballet, ou a música, ou a união entre eles. Nem mesmo o teatro que sedia a sede de expressar. Nada é belo. Tudo está fadado à reconstrução extremamente equívoca de que é possível ser feliz em uma vida totalmente miserável. Nada, absolutamente nada é belo. E é no vácuo que fica o fosso, no vazio que reside a saudade, no não que mora a vontade de gritar aos quatro cantos que tudo o que se vive é artificial, embora arrepiem os cabelos do braço e da nuca em prazeres momentâneos de admiração pelos dedos dos pés sobrecarregados – pela vida e pelo peso do corpo.

Tudo na vida é sobrecarregar algo em troca de outra coisa, sem saber exatamente o motivo. Se for pela pressa de viver, sobrecarrega-se o presente. Pelas angústias sobre o que não foi vivido, o passado. Pela incerteza do porvir, o futuro. Enquanto isso, a plateia acompanha um espetáculo non sense, conjecturando como se tudo fosse expressão de uma tal arte moderna. A bailarina não sabe o que é arte moderna, move-se apenas para resistir às suas desventuras. Enlouqueceu e está dançando sem música. Não há mistério, nem segredo. O infinito particular da bailarina é a vontade de pular no fosso como se dali fosse sair em pleno voo, rumo à sala secreta que ninguém conhece, onde moram seus próprios fantasmas e demônios.

O fosso não está vazio, pois nele estão sepultados todos os sonhos não vividos dessa vida que é uma lástima. A plateia espera, cheia de expectativas, novos saltos e giros, carregados de esplendor, enquanto ela finge que não é difícil lutar contra a gravidade de si mesma, contra os próprios ímpetos, contra a falta de vontade de pisar novamente naquele ou em qualquer outro palco.

As luzes se apagaram e a plateia continua atônita, impressionada com o conceito do espetáculo, com a performance da bailarina e tentando decifrar os dilemas e mistérios em cada passo dado ou contido. Quais serão as próximas cenas? Não existirão. A bailarina finalizou o improviso pulando no fosso, pois acreditava que tinha as asas de uma borboleta laranjada. As luzes do teatro se acenderam e chamaram a polícia e os paramédicos. Ela morreu instantaneamente, seu corpo estava estirado no fosso, ao lado do púlpito do maestro. A plateia continuou incrédula, pois é só o que faz: assiste ao espetáculo, mas foi incapaz de assistir a bailarina quando ela precisou. Uma salva de palmas à passividade e à morte derradeira, ao fosso e às coxias, ao espetáculo e ao que passa despercebido. Aplausos!