Quem quer comprar um carro zero
quilômetro, vai à concessionária de veículos. Não há mistério quanto a isso. Para
pagar, usa carta de crédito, compra à vista, parcelado... Não sei bem. Só sei
que as pessoas olham, olham, olham. Perguntam, perguntam, perguntam. Após
escolherem, pagam pelo carro e emplacamento. Dias depois, aparecem de novo e
saem dirigindo o automóvel. Às vezes, decoram os carros com um laço imenso para
os novos proprietários, o que eu, particularmente, acho bem cafona.
A concessionária tem carros para
todos os gostos: desde os populares até os tops de linha, com motor de não sei
quantos cavalos, teto solar, sistema de som integrado, botões no volante (acho
chiquérrimo quando os carros têm botões no volante), quatro portas, vidros
elétricos, diversas opções de cores. Comprar um carro é simples, desde que se
tenha o dinheiro necessário. Ou seja, comprar um carro na concessionária significa
que o adquirente já fez uma seleção prévia e busca um automóvel nunca antes
utilizado, sem defeitos de fábrica, sem arranhões feitos pelos donos
anteriores. Nada de seminovo. Nada de motor maquiado. Nada de correias antigas.
Placa nova para estrear as multas, fragrância de carro novo sem ser daquelas
que vendem nos postos de gasolina, pouco combustível no tanque para sair da
loja. Os carros novos são, então, melhores. É lógico.
É exatamente por isso que não sei o
porquê de eu estar aqui. Minhas lanternas estão quebradas ou queimadas, meus
pneus estão carecas, estou sem estepe. Quando ligam meu motor, faço um barulho
tremendo. Meu som não acende a luz, embora toque as músicas pelo bluetooth.
Meu capô está queimado de sol, minhas portas estão arranhadas e gastas pelo
tempo (a tinta preta não ajuda, qualquer grão de areia deixa meia dúzia de
arranhões). Estou sem revisão há uns três anos e meu ar condicionado não
resfria muito bem.
Ao lado dos carros zero quilômetro,
sinto-me um calhambeque todo esculhambado. Não entendo o porquê de os curiosos
insistirem em fazer test drive comigo. Eles aparecem, olham, olham,
olham. Escolhem-me sem dizer o motivo e me colocam para rodar. Pela minha rua,
pelo bairro, município afora. Estou seguindo itinerários nunca antes
percorridos sem sequer saber o porquê de morar nessa concessionária, que
claramente é incompatível com o que sou capaz de oferecer.
Sinto que a qualquer momento posso
desmoronar. Não estou em condições de trilhar longos caminhos, levar as pessoas
por inusitadas jornadas ou mesmo dividir a faixa de trânsito com os carros zero
quilômetro. Não entendo o motivo de insistirem em me exibir junto aos carros de
tinta brilhante e retrovisores bem pintados. Meu espelho está trincado, vejo
meu passado de forma fragmentada e meu sensor de ré quebrou faz muito tempo.
Não sei voltar atrás e quero ir adiante, embora eu ache que essas ruas bem
asfaltadas não sejam o meu lugar, tampouco a concessionária é.
Meu sistema de som ainda funciona, ainda bem. Consigo captar os compradores pela poesia musicada, talvez. Toco boas melodias, embalo as viagens. Mesmo com o IPVA atrasado, colocam-me para rodar. Não entendo. Meu prazo se esgotou faz tempo, pedi prorrogação para o pagamento, qualquer dia serei pego em uma blitz e o motorista não poderá reclamar, pois sabia previamente. Aí vou para o curral, ficar ao lado dos meus: quebrados, desalinhados, com o imposto atrasado, com a tinta corroída pelo sol, vidros com a película gasta, sem teto solar. Mas insistem em me fazer morar naquela concessionária. Não vou dizer que não gosto. Eu gosto, só não entendo.
