Entre o palco e a plateia, há o fosso. Apesar de não estar à vista de todos, muitas coisas acontecem por lá, começando pelo posicionamento da orquestra quando o palco é utilizado pelos bailarinos. Estes últimos, nas coxias, escondem o que não mostram no palco: as dores, bolhas, cansaço, figurinos pelo chão e sapatilhas velhas. Tudo o que não está no palco e na plateia passa imperceptível aos olhos dos admiradores.
É o idealizar do que é bonito às vezes, mas nem sempre. Dos instrumentos que entoam bonitas melodias, mas que também desafinam e quebram as cordas. Dos deslizes no linóleo e torcer dos tornozelos. Se tudo o que está no palco tem a pretensão de ser belo, o que está fora dele tem o único intuito de em algum momento ser exibido por lá, seja em som ou em coreografia. O que está no fosso e nas coxias não é ensaiado, especialmente quando o fosso está vazio.
As luzes
se apagam e a música que anuncia o início de mais um espetáculo começa a tocar,
criando uma sensação que só existe dentro do Theatro de detalhes áureos e teto
cuidadosamente pincelado ao redor do lustre, registrando a herança da Belle Époque.
As cortinas vermelhas começaram a se abrir lentamente, enquanto a cena já
estava preparada em cima do palco. A plateia aguardava de olhos atentos a
expressão da beleza em cima das sapatilhas, dos saltos flutuantes e giros impressionantes.
A
plateia vai ao teatro para ver o que é bonito, mas pouco se importa com a dor
por detrás das coxias, com o burburinho que faz a mente de cada um que
contribui para o enredo ou com quantas vezes cada repertório precisou ser
revivido para conquistar a sua atenção. O único objetivo dos pares de olhos
sentados nas cadeiras enfileiradas do teatro é receber o que foi ensaiado para
lhe ser entregue, num ato passivo de acreditar que é o centro da arte
expressada enquanto os pipoqueiros sobrevivem do lado de fora da construção
bela, porém elitista, que relembra um triste passado da exploração da borracha.
Nada
na vida é belo. Nem mesmo o espetáculo. Nem mesmo o ballet, ou a música,
ou a união entre eles. Nem mesmo o teatro que sedia a sede de expressar. Nada é
belo. Tudo está fadado à reconstrução extremamente equívoca de que é possível
ser feliz em uma vida totalmente miserável. Nada, absolutamente nada é belo. E
é no vácuo que fica o fosso, no vazio que reside a saudade, no não que mora a
vontade de gritar aos quatro cantos que tudo o que se vive é artificial, embora
arrepiem os cabelos do braço e da nuca em prazeres momentâneos de admiração pelos
dedos dos pés sobrecarregados – pela vida e pelo peso do corpo.
Tudo
na vida é sobrecarregar algo em troca de outra coisa, sem saber exatamente o
motivo. Se for pela pressa de viver, sobrecarrega-se o presente. Pelas angústias
sobre o que não foi vivido, o passado. Pela incerteza do porvir, o futuro. Enquanto
isso, a plateia acompanha um espetáculo non sense, conjecturando como se
tudo fosse expressão de uma tal arte moderna. A bailarina não sabe o que é arte moderna, move-se apenas para resistir às suas desventuras. Enlouqueceu e está
dançando sem música. Não há mistério, nem segredo. O infinito particular da bailarina
é a vontade de pular no fosso como se dali fosse sair em pleno voo, rumo à sala
secreta que ninguém conhece, onde moram seus próprios fantasmas e demônios.
O
fosso não está vazio, pois nele estão sepultados todos os sonhos não vividos
dessa vida que é uma lástima. A plateia espera, cheia de expectativas, novos
saltos e giros, carregados de esplendor, enquanto ela finge que não é difícil
lutar contra a gravidade de si mesma, contra os próprios ímpetos, contra
a falta de vontade de pisar novamente naquele ou em qualquer outro palco.
As
luzes se apagaram e a plateia continua atônita, impressionada com o conceito do
espetáculo, com a performance da bailarina e tentando decifrar os dilemas e
mistérios em cada passo dado ou contido. Quais serão as próximas cenas? Não
existirão. A bailarina finalizou o improviso pulando no fosso, pois acreditava
que tinha as asas de uma borboleta laranjada. As luzes do teatro se acenderam e
chamaram a polícia e os paramédicos. Ela morreu instantaneamente, seu corpo estava estirado no
fosso, ao lado do púlpito do maestro. A plateia continuou incrédula, pois é só o que faz: assiste ao
espetáculo, mas foi incapaz de assistir a bailarina quando ela precisou. Uma
salva de palmas à passividade e à morte derradeira, ao fosso e às coxias, ao
espetáculo e ao que passa despercebido. Aplausos!
