Se a
vida fosse um grande banquete chique, os episódios seriam feitos de improviso
pelo chef e colocados naqueles pratos com tampa prateada, que os grã-finos
chamam de cloche. Para quem se senta à mesa, sem saber pelo que esperar, pode
vir um combinado de arroz à piamontese e filé, o melhor corte de sushi, pastel
de pato ou um pote de sorvete com feijão congelado dentro. Resta saber,
portanto, se o paladar do degustador estará a postos para o inesperado, como
quem vai à Dedos de Mel e resolve experimentar feijõezinhos de todos os sabores
(foi mais ou menos assim que descobri que compartilhávamos a mesma sala comunal
em Hogwarts).
De
comum acordo, decidimos visitar um lugar novo na cidade, cuja decoração era
composta por alguns dos nossos itens favoritos: livros. As paredes
verde-bandeira, agraciadas pelas prateleiras amarelas, receberam um toque
especial dos livros de sebo encapados de vermelho com letra dourada, em uma
belíssima mensagem subliminar que sussurra: ainda há chance de ser gauche.
Falando
em gauche... logo após descobrirmos
que a nossa casa em Hogwarts é a mesma, apertamos dois sorrisos e nos encaramos
breve e timidamente. Para quebrar o gelo (ou evitar a ebulição instantânea),
ele perguntou quais eram minhas tatuagens. Naturalmente, recitei a ode de
Ricardo Reis que repousa sobre minha clavícula, e depois falei desajeitadamente
alguns versos do Poema de Sete Faces do Drummond: “vai, Carlos, ser gauche na vida!”. Por que gauche? Esquerda, torta, desajeitada canhota.
Rindo
de forma incrédula, ele disse baixinho: “mentira que tu também gostas de
poesia...”. Foi, então, que nossos lábios se encontraram em silêncio, ao som da
banda de jazz que embalava a noite (e
que nos ajudou a começar a conversar – o que não foi difícil, afinal de contas,
porque já nas primeiras frases tropeçamos em Thelonious Monk).
Afastamos
nossos rostos, sem desviar os olhares que, naquele momento, compartilhavam uma
tensão particular e tentavam transmitir alguma mensagem mútua: onde tu estavas
esse tempo todo? Por acaso estudaste as respostas que deverias dar às minhas
perguntas antes de vir? O quão imenso é o universo dessa pessoa sentada ao meu
lado?
Para
quebrar o silêncio, perguntei: “e tu, quais tatuagens gostarias de fazer?”. Ele
respondeu que gostaria de tatuar a Sociedade do Anel caminhando enfileirada,
cena clássica de O Senhor dos Anéis que, por coincidência, ilustra a proteção
de tela do meu computador. Dessa vez, eu ri, sem acreditar, pois aquelas
informações todas só poderiam ser parte do trabalho de um excelente detetive
particular, ou foi o chef que elabora o roteiro da vida que resolveu me pregar
uma peça e caprichou no prato que está sob o cloche (ou tampa de inox
misteriosa, para os menos elegantes).
Enquanto
a banda tocava Tom, todo o público cantava desafinado e erguendo os copos de
cerveja: “dentro dos meus braços os
abraços hão de ser milhões de abraços; apertado assim, colado assim, calado
assim; abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim; que é pra acabar com esse
negócio de você viver sem mim”. Nós seguíamos o coro, em pé, com os braços
dele envolvendo a minha cintura, enquanto balançávamos nossos corpos no ritmo
da música e daquela sinestesia sinistra que nos envolvia, especialmente por
saber que, qualquer que fosse a história escrita a partir daquele dia,
necessariamente envolveria saudade (por paradoxo ou ironia da sinopse de uma
sitcom de humor duvidoso).
Há
histórias que a gente só descobre o fim escrevendo, pois não se sustentam em
uma crônica. Mas, assim como Bandeira escreveu inúmeras, levando Drummond a
reunir algumas em uma coletânea em homenagem ao centenário de nascimento do
Bardo, estou disposta a transformar em prosa cada uma das histórias envolvendo
o largo e lindo sorriso da cadeira ao lado, para quem olhei curiosamente ao som
da música tema da Disney tocada pela banda de jazz e admirei mentalmente todas as semelhanças que flutuavam ao
nosso redor.
Apesar
de serem os primeiros abraços, espero que sejam milhões. Apertados, colados e
calados, como compuseram Tom e Vinícius (este último, um dos Sabiás da
Crônica), porque tão raro é o encaixe, assim como as semelhanças. Uma pena a
distância da estrada que nos separa dos abraços, da descoberta de qual será o
fim dessa história e em qual gênero literário encaixaremos o texto. Para todos
os efeitos, canto bem baixinho o pedido de Marisa: entre tanta gente chata e sem nenhuma graça, você veio; por isso, não
vá embora.

