quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Then it's a date

Se a vida fosse um grande banquete chique, os episódios seriam feitos de improviso pelo chef e colocados naqueles pratos com tampa prateada, que os grã-finos chamam de cloche. Para quem se senta à mesa, sem saber pelo que esperar, pode vir um combinado de arroz à piamontese e filé, o melhor corte de sushi, pastel de pato ou um pote de sorvete com feijão congelado dentro. Resta saber, portanto, se o paladar do degustador estará a postos para o inesperado, como quem vai à Dedos de Mel e resolve experimentar feijõezinhos de todos os sabores (foi mais ou menos assim que descobri que compartilhávamos a mesma sala comunal em Hogwarts).

De comum acordo, decidimos visitar um lugar novo na cidade, cuja decoração era composta por alguns dos nossos itens favoritos: livros. As paredes verde-bandeira, agraciadas pelas prateleiras amarelas, receberam um toque especial dos livros de sebo encapados de vermelho com letra dourada, em uma belíssima mensagem subliminar que sussurra: ainda há chance de ser gauche.

Falando em gauche... logo após descobrirmos que a nossa casa em Hogwarts é a mesma, apertamos dois sorrisos e nos encaramos breve e timidamente. Para quebrar o gelo (ou evitar a ebulição instantânea), ele perguntou quais eram minhas tatuagens. Naturalmente, recitei a ode de Ricardo Reis que repousa sobre minha clavícula, e depois falei desajeitadamente alguns versos do Poema de Sete Faces do Drummond: “vai, Carlos, ser gauche na vida!”. Por que gauche? Esquerda, torta, desajeitada canhota.

Rindo de forma incrédula, ele disse baixinho: “mentira que tu também gostas de poesia...”. Foi, então, que nossos lábios se encontraram em silêncio, ao som da banda de jazz que embalava a noite (e que nos ajudou a começar a conversar – o que não foi difícil, afinal de contas, porque já nas primeiras frases tropeçamos em Thelonious Monk).

Afastamos nossos rostos, sem desviar os olhares que, naquele momento, compartilhavam uma tensão particular e tentavam transmitir alguma mensagem mútua: onde tu estavas esse tempo todo? Por acaso estudaste as respostas que deverias dar às minhas perguntas antes de vir? O quão imenso é o universo dessa pessoa sentada ao meu lado?

Para quebrar o silêncio, perguntei: “e tu, quais tatuagens gostarias de fazer?”. Ele respondeu que gostaria de tatuar a Sociedade do Anel caminhando enfileirada, cena clássica de O Senhor dos Anéis que, por coincidência, ilustra a proteção de tela do meu computador. Dessa vez, eu ri, sem acreditar, pois aquelas informações todas só poderiam ser parte do trabalho de um excelente detetive particular, ou foi o chef que elabora o roteiro da vida que resolveu me pregar uma peça e caprichou no prato que está sob o cloche (ou tampa de inox misteriosa, para os menos elegantes).

Enquanto a banda tocava Tom, todo o público cantava desafinado e erguendo os copos de cerveja: “dentro dos meus braços os abraços hão de ser milhões de abraços; apertado assim, colado assim, calado assim; abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim; que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. Nós seguíamos o coro, em pé, com os braços dele envolvendo a minha cintura, enquanto balançávamos nossos corpos no ritmo da música e daquela sinestesia sinistra que nos envolvia, especialmente por saber que, qualquer que fosse a história escrita a partir daquele dia, necessariamente envolveria saudade (por paradoxo ou ironia da sinopse de uma sitcom de humor duvidoso).

Há histórias que a gente só descobre o fim escrevendo, pois não se sustentam em uma crônica. Mas, assim como Bandeira escreveu inúmeras, levando Drummond a reunir algumas em uma coletânea em homenagem ao centenário de nascimento do Bardo, estou disposta a transformar em prosa cada uma das histórias envolvendo o largo e lindo sorriso da cadeira ao lado, para quem olhei curiosamente ao som da música tema da Disney tocada pela banda de jazz e admirei mentalmente todas as semelhanças que flutuavam ao nosso redor.

Apesar de serem os primeiros abraços, espero que sejam milhões. Apertados, colados e calados, como compuseram Tom e Vinícius (este último, um dos Sabiás da Crônica), porque tão raro é o encaixe, assim como as semelhanças. Uma pena a distância da estrada que nos separa dos abraços, da descoberta de qual será o fim dessa história e em qual gênero literário encaixaremos o texto. Para todos os efeitos, canto bem baixinho o pedido de Marisa: entre tanta gente chata e sem nenhuma graça, você veio; por isso, não vá embora.

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