Sou bem relutante a qualquer
misticismo, confesso. Apesar disso, também tento agarrar minhas esperanças em
previsões de horóscopo ou tarot, que de alguma forma sirvam como consolo pelas
desventuras vividas no presente, na esperança de que o futuro trará algum tipo
de recompensa por todas as vezes em que precisei cavar resiliência num poço que
já estava fundo o suficiente pra me afogar. Dois mil e vinte e dois foi uma mistura
louca e esquisita de êxito e fracasso, realizações e frustrações, tudo ao mesmo
tempo, no mesmo drink.
Totalmente sóbria, nos últimos dias do
ano, apenas sob efeito do meu ansiolítico, resolvi testar uma experiência
diferente: a reclusão. Gosto de ser só e isso não é novidade, o que vinte e
dois me ensinou foi a aproveitar minha presença, mesmo quando eu sou uma
companhia desagradável. Quem melhor do que eu pra saber lidar com aquela
convidada que chegou fora de hora e entrou de sapatos sujos no meu quarto,
deixando-me grudada na cama durante dias? Foi então que precisei me olhar no
espelho e aceitar, também, a minha versão com olhos inchados de tanto dormir a
contragosto, e entender que, apesar de intragável, ela também sou eu. Saber
conviver com ela e o que fazer pra ela ir embora é o meu maior desafio, e foi o
maior de todos em vinte e dois. Mergulhei nas profundezas do meu coração, da
minha escrita, dos meus limites e das minhas incertezas. O autoconhecimento
dói. Dói muito.
Não consegui embarcar nos festejos de
fim de ano, nem nas confraternizações familiares, tampouco em rituais (tenho
medo, confesso, porque da última vez o feitiço virou contra a feiticeira e
incorporei um pára-raio de desgraça). Faltando umas tantas pra meia noite, saí
pela casa soprando canela, como dizem que tem que ser feito. Preciso ser
próspera para pagar dívidas e já tinha a mistura aqui. No pior dos casos, se a
simpatia não der certo, ao menos minha mão está cheirando a rabanada.
Sentei na minha mesa dos pensamentos,
com o planner novo em branco, sem metas estabelecidas pra me frustrar e sem
reflexões pra me alfinetar. Decidi passar a virada sozinha, ao som do ar
condicionado, bebendo água e escrevendo.
É o que faço da vida. Escrevo. Por
gosto, mas também por necessidade. Pra desfazer esse nó na garganta que não sai
nem na terapia. Pra encarar todas as minhas versões, inventadas ou reais. Pra
contar mentiras palatáveis pra quem gosta de romance. Pra verbalizar meu grito
mudo. Hoje, com a versão nua e crua encarnada, escrevo que faltam dois minutos
pra acabar dois mil e vinte e dois.
Sigo por aqui, sem enredo, olhando às
vezes para a minha cachorra que tem medo de fogos, para me certificar que está
tudo bem. Está. Eu também estou. Digerindo de formas confusas minhas tantas
culpas pelo que fui e por quem sou, escrevendo agora que falta um.
Não sei quantos segundos, exatamente,
neste instante.
Pisquei algumas vezes, porque o glitter
já caiu pelos olhos enquanto lacrimejo por baixo dos óculos agateados.
Meia noite.
Dois mil e vinte e três: mudou o
calendário do computador. Eu não sei, mesmo, o que esperar. Sequer sei se
espero algo. Não sei se pela depressão ou pelos calos, vejo o Ano Novo só como um
novo calendário, mas a vida é a mesma e nós, lamentavelmente, também. A mudança
que espero vem de dentro, mas também de rumos, cujas rédeas já tomei, mas ainda
não cheguei. Minha bússola está tremelicando, algum problema com o ímã. Deve ser
porque a terra é plana. Não! A partir de hoje, primeiro de janeiro de dois mil
e vinte e três, ela voltou a ser redonda. Ainda bem, muitos anos de ensino
médio e fundamental iriam pelo ralo com tanta lorota, imagine só meu mestrado
em direitos humanos... O dia vai nascer feliz lá em Brasília. Essa foi uma das
benesses de dois mil e vinte e dois.
Meia noite e três. As pessoas devem
estar se abraçando, fazendo brindes de champagne barato e atraindo boas
energias para o novo ano que nasce. A essa altura, já deve ter nascido também o
primeiro bebê de dois mil e vinte e três em uma maternidade qualquer do Brasil.
Espero mesmo que as boas energias venham, e que o dia nasça feliz pra todos,
porque ainda estamos sob efeito da morfina que foi a pandemia. Os ouvidos ainda
estão zumbindo depois de tudo isso e de todos que perdemos. Estamos
reaprendendo a viver.
Deixei em vinte e dois o cachorro da
minha vida, minha melhor amiga Leia. Vai doer muito escrever o in memoriam
nos agradecimentos do meu livro, que deve sair agora no primeiro semestre. Ela
me arrancou sorrisos quando nem eu mesma achava que era possível.
Entrei em vinte e três com o pé
esquerdo. Porque sou canhota, sou gauche, e teremos um novo governo vermelho.
Meia noite e seis. Escrevo só o que vem. De repente, o texto deixou de ser
sobre a depressão e passou a ser sobre esperança. Acabo de descobrir que ainda
há isso por aqui, na espontaneidade das palavras que fluem sem controle nas
pontas dos meus dedos. Este é o primeiro escrito de dois mil e vinte e três, e
o último de vinte e dois. Teria um pout-pourri de músicas clichês pra citar, mas
a mpb já fez isso por mim, então me poupou um trabalhão. Que bom que não morri ano
passado, espero agora sentir de novo vontade de viver. Isso é sobre depressão,
mas também é sobre esperança, que expressei no glitter azul e rosa dos meus
olhos e na minha saia de gaivotas. É libertador ser eu mesma, em todas as minhas
cores, sem poda de asas. Fernão Capelo transcendeu antes de ensinar, após ficar
muito insatisfeito com tudo o que vivia e ousar fazer novas manobras. Em vinte e
três quero voar. Meia noite e treze.
