Aos
quase trinta, já se passaram cinco desde o último adeus. Sempre que abro as
portas de agosto, sinto o pesar da saudade e o involuntário flashback de
cada um dos dias que anteciparam o silêncio. A gente não é ensinado a lidar com
a morte, até que ela aconteça. Também não é ensinado a lidar com o luto, até
que ele esteja instalado. Muito menos é ensinado a lidar com a saudade,
especialmente do que não foi possível viver junto de quem se foi.
Eu
teria uma vida inteira de novidades para contar. Relatos que, sei, você ouviria
contente e orgulhoso. Outros que, com certeza, fariam você se aborrecer comigo.
Como o carro sujo, as batidas nas laterais, a falta de autoestima, o cachorro
grande dormindo na minha cama, as ultrapassagens perigosas no trânsito e o abuso
do delivery. Eu queria ver sua expressão de insatisfação ao se deparar
com a lateral esquerda do carro e ouvir a porta rangendo ao abrir, porque não
arrumei até hoje. Queria que você reclamasse de todas as vezes em que não sou
pontual e me encarasse com expressão de descontentamento quando deixei entrar
água na marcha do carro ao fazer dele uma lancha. Gostaria muito de ver seu ar
de desaprovação por eu ser tão você, mesmo que você tenha me desaconselhado veementemente
a seguir esse caminho.
Agosto
chega e, aos poucos, rasga meu coração com a saudade que sinto o resto do ano
inteiro. Esse ano, em especial, com tantas coisas para te contar, com tantas
dúvidas pra pedir conselhos, tantas felicidades pra partilhar. Assisti a um espetáculo
de ballet e foi inevitável te sentir na plateia, mesmo que a plateia
fosse eu. Todos os concertos de música clássica me remetem às lembranças da
minha formação musical desenhada cuidadosamente por você. A cada aula, palestra e artigo, lembro
de sua bolsinha de pincéis com apagador e das suas noites em claro que eu não
entendia muito bem. Hoje entendo. Queria partilhá-las com você.
Quarta-feira
da segunda semana de agosto, com o coração pesado como um piano, não identificava
o porquê. Até me dar conta de que é quarta-feira da segunda semana de agosto, que
precede uma das vésperas do dia dos pais. Só acho injusto, mas sei que é preciso
lidar com a ausência e com meus demônios. Tenho ciência de que o porvir sempre nos reserva a morte, mais cedo ou mais tarde. Como a lembrança do céu azul daquele
domingo de agosto em que apoiei minha cabeça no ombro de um amigo e disse: “acho
que ele não passa de terça-feira”, e você se foi logo em seguida, no domingo
mesmo. Como se esperasse que eu tivesse a tranquilidade de entender que você
iria embora, para, então, partir. Tranquilidade que me fez soltar uma risadinha
ao te ver de olhos fechados e rodeado por crisântemos brancos, imaginando que
eu te diria que você estava parecido com uma ovelha, em uma constatação
tragicômica que absolutamente ninguém seria capaz de entender.
Sinto
falta dos seus olhos castanhos claros e do seu cabelo ralo penteado pra cima,
das risadas e de me sentir invencível, porque você estaria ali. Saudades
daqueles abraços longos em que eu ouvia atentamente seu coração bater, ou de te
ver calçar os sapatos na porta de casa, sentado num banco de madeira e enchendo
os pés de talco. O jardim de casa está morto faz tempo e os beija-flores pararam
de me visitar, porque você nunca mais colocou água para eles no suporte floral
de plástico. Os passarinhos da vizinhança ainda cantam no fim de tarde e na alvorada,
mas faz tempo que não ligo o lustre metafórico que você construiu colocando uma
lâmpada dentro de uma gaiola bonita de aço. As borboletas laranjadas do jardim também
desapareceram, só sobreviveu a que tatuei no braço.
Hoje, sem você aqui, fortaleço-me imaginando
como seria se estivesse, o que diria a cada notícia nova, o que acharia dos
quadros novos que pintei ou do meu bordado desajeitado. Como reagiria aos meus
pretendentes, quais palpites daria sobre meu doutorado, que conselhos
escolheria me dar e quais guardaria para si, aguardando a vida me ensinar. A
vida tem me ensinado bastante, nem sempre com didática e às vezes tropeço em
uma avaliação ou outra. Sinto falta do melhor professor que tive, e era com ele
que eu gostaria de aprender a ser.
Na
fluidez desse texto escrito com o coração na ponta dos dedos, queria que meu
maior leitor tivesse a oportunidade de opinar sobre essas palavras (e sobre as
outras que escrevi nesse meio tempo). A lucidez do adeus esmaga meu coração em
agosto, mais que em qualquer outro mês, mais que por qualquer outro motivo. Em
um café qualquer da cidade, escrevo essas palavras em uma tarde chuvosa e
nublada, sabendo que ao chegar em casa vou encontrar sua ausência.
