quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Lucidez

Aos quase trinta, já se passaram cinco desde o último adeus. Sempre que abro as portas de agosto, sinto o pesar da saudade e o involuntário flashback de cada um dos dias que anteciparam o silêncio. A gente não é ensinado a lidar com a morte, até que ela aconteça. Também não é ensinado a lidar com o luto, até que ele esteja instalado. Muito menos é ensinado a lidar com a saudade, especialmente do que não foi possível viver junto de quem se foi.

Eu teria uma vida inteira de novidades para contar. Relatos que, sei, você ouviria contente e orgulhoso. Outros que, com certeza, fariam você se aborrecer comigo. Como o carro sujo, as batidas nas laterais, a falta de autoestima, o cachorro grande dormindo na minha cama, as ultrapassagens perigosas no trânsito e o abuso do delivery. Eu queria ver sua expressão de insatisfação ao se deparar com a lateral esquerda do carro e ouvir a porta rangendo ao abrir, porque não arrumei até hoje. Queria que você reclamasse de todas as vezes em que não sou pontual e me encarasse com expressão de descontentamento quando deixei entrar água na marcha do carro ao fazer dele uma lancha. Gostaria muito de ver seu ar de desaprovação por eu ser tão você, mesmo que você tenha me desaconselhado veementemente a seguir esse caminho.

Agosto chega e, aos poucos, rasga meu coração com a saudade que sinto o resto do ano inteiro. Esse ano, em especial, com tantas coisas para te contar, com tantas dúvidas pra pedir conselhos, tantas felicidades pra partilhar. Assisti a um espetáculo de ballet e foi inevitável te sentir na plateia, mesmo que a plateia fosse eu. Todos os concertos de música clássica me remetem às lembranças da minha formação musical desenhada cuidadosamente por você. A cada aula, palestra e artigo, lembro de sua bolsinha de pincéis com apagador e das suas noites em claro que eu não entendia muito bem. Hoje entendo. Queria partilhá-las com você.

Quarta-feira da segunda semana de agosto, com o coração pesado como um piano, não identificava o porquê. Até me dar conta de que é quarta-feira da segunda semana de agosto, que precede uma das vésperas do dia dos pais. Só acho injusto, mas sei que é preciso lidar com a ausência e com meus demônios. Tenho ciência de que o porvir sempre nos reserva a morte, mais cedo ou mais tarde. Como a lembrança do céu azul daquele domingo de agosto em que apoiei minha cabeça no ombro de um amigo e disse: “acho que ele não passa de terça-feira”, e você se foi logo em seguida, no domingo mesmo. Como se esperasse que eu tivesse a tranquilidade de entender que você iria embora, para, então, partir. Tranquilidade que me fez soltar uma risadinha ao te ver de olhos fechados e rodeado por crisântemos brancos, imaginando que eu te diria que você estava parecido com uma ovelha, em uma constatação tragicômica que absolutamente ninguém seria capaz de entender.

Sinto falta dos seus olhos castanhos claros e do seu cabelo ralo penteado pra cima, das risadas e de me sentir invencível, porque você estaria ali. Saudades daqueles abraços longos em que eu ouvia atentamente seu coração bater, ou de te ver calçar os sapatos na porta de casa, sentado num banco de madeira e enchendo os pés de talco. O jardim de casa está morto faz tempo e os beija-flores pararam de me visitar, porque você nunca mais colocou água para eles no suporte floral de plástico. Os passarinhos da vizinhança ainda cantam no fim de tarde e na alvorada, mas faz tempo que não ligo o lustre metafórico que você construiu colocando uma lâmpada dentro de uma gaiola bonita de aço. As borboletas laranjadas do jardim também desapareceram, só sobreviveu a que tatuei no braço.

 Hoje, sem você aqui, fortaleço-me imaginando como seria se estivesse, o que diria a cada notícia nova, o que acharia dos quadros novos que pintei ou do meu bordado desajeitado. Como reagiria aos meus pretendentes, quais palpites daria sobre meu doutorado, que conselhos escolheria me dar e quais guardaria para si, aguardando a vida me ensinar. A vida tem me ensinado bastante, nem sempre com didática e às vezes tropeço em uma avaliação ou outra. Sinto falta do melhor professor que tive, e era com ele que eu gostaria de aprender a ser.

Na fluidez desse texto escrito com o coração na ponta dos dedos, queria que meu maior leitor tivesse a oportunidade de opinar sobre essas palavras (e sobre as outras que escrevi nesse meio tempo). A lucidez do adeus esmaga meu coração em agosto, mais que em qualquer outro mês, mais que por qualquer outro motivo. Em um café qualquer da cidade, escrevo essas palavras em uma tarde chuvosa e nublada, sabendo que ao chegar em casa vou encontrar sua ausência.

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