domingo, 25 de maio de 2025

Hipérbole

 

No meio da madrugada, sentado à beira da cama, agarrou minha cintura e disse bem baixinho e olhando nos meus olhos:

“Promete que volta?”

“Volto quando, doido?” – e ri.

“Sempre.”

“A gente vai se ver amanhã, e prometo que volto amanhã.”

Na minha tentativa de ser honesta e dizer que queria voltar, mas “sempre” era muito tempo para prometer (especialmente no primeiro dia), escolhi as palavras certas para a profundidade do diálogo (que me arrancou um sorriso suave de canto de boca após ele fechar a porta, acompanhado dos cutucões dos anticorpos que tenho por já estar vacinada).

Vivo em hipérbole e assumi que sou desse jeito. Por ser assim e por já ter escrito umas tantas histórias de amor falidas (minhas e inventadas), consigo identificar quando as palavras são vãs quando ditas por um homem solteiro – e normalmente não ligo quando o são, acho satisfatória a sensação de, sabendo que a armadilha foi feita, desarmá-la e depois desaparecer por mim mesma, levando comigo somente uma boa história que eu mesma roteirizei e vou contar ao meu punhado de amigos em forma de tragicomédia.

A gente cresce achando que tem que ser escolhida e é deliciosa a epifania de descobrir que, na verdade, sou eu quem escolhe (e, se der sorte, posso ser escolhida de volta). Essa descoberta me permitiu continuar vivendo com a intensidade que minhas conexões neurais imploram, mas guardar meu eu de verdade para quando – e se – houver intimidade. Por isso, adoro narrar as histórias vividas com homens que nunca mais verei, talvez porque nunca me pediram pra voltar, mas, principalmente, porque eu nunca quis.

Aquele diálogo à meia-luz, no entanto, me parecia perigosamente sincero – em que pese a inegável hipérbole, porque “sempre” é mesmo muito tempo. O cinismo da prematuridade flerta com os românticos, porque vez ou outra a gente cogita voltar a acreditar que os astros se alinham e haverá alguém para cantar a segunda voz em Dueto de Chico Buarque. Tudo, em que pese hipnótico, não passa de um bom diálogo a ser transcrito em crônica.

Assim como o dia em que atravessei a Avenida Paulista de patinete à meia-noite, abraçada na cintura de um irlandês, da Consolação à Brigadeiro Luis Antonio, rindo e dizendo a ele que iríamos morrer; ou o dia em que bati o martelo de que aceitaria sair com um documentarista porque queria muito ouvi-lo falar sobre o Modernismo brasileiro, tema que me tira dos eixos e eu adoro gente inteligente; ou o dia em que o professor de direito penal me levou para conhecer as cachoeiras de Goiás, num domingo que passei por Brasília; ou outras tantas histórias que vivi para escrever, ou escrevi porque escolhi viver daquele jeito, capturada pelo momento e captando todos os detalhes.

No dia seguinte, apesar de termos nos encontrado, só não cumpri minha promessa de voltar por razões alheias ao planejado. Ele me deixou em casa e, ao se despedir, perguntou:

“Te vejo durante a semana?”

“Quantas vezes?” – fiz uma provocação, pra ver a reação e testar a sagacidade da resposta.

“Uma: você vem e fica.”

O homem é bom em exageros e respostas inusitadas, e agradeço a ele pelo material para a escrita, em que pese o futuro tenha se revelado como o esperado. Talvez meu viver em hipérbole seja tão passageiro e intenso quanto o vento, que passa levantando os pelos dos braços, mas uma hora ou outra vai embora, porque nenhum lugar lhe cabe e ainda não apareceu alguém capaz de lidar com os reboliços que ele é capaz de causar. O vento: hiperbólico, infinito em si mesmo e convictamente desacompanhado – e tão poético quanto tudo isso.

sábado, 10 de maio de 2025

Umami

 

Trajada com o clássico biquíni rosa pink, camisa de botão listrada rosa com branco e usando um chapéu de palha que finge certa elegância, tomava a quarta cerveja sozinha, embaixo do guarda-sol, na Praia da Barra em Salvador. Experimentava aquela ótima sensação de estar quase bêbada, em que as pontas dos dedos ficam mais sensíveis e os sorrisos ficam mais fáceis. Foi quando, por coincidência ou oportunidade, passou um andarilho e se ofereceu pra tirar meu tarot por cinquenta reais. À beira da boemia, a carteira também se abre mais fácil. Topei a leitura de tarot, ansiosa por um spoiler que me deixasse satisfeita (e indicasse, pelo menos, que em algum momento eu me encaixaria em algum lugar e me encontraria nessa vida).

O cara desconhecido pegou o baralho, distribuiu as cartas na areia e se pôs a falar várias coisas sobre meu signo e meu comportamento, de um jeito genérico o suficiente pra eu me identificar, mas sagaz o bastante pra eu não perceber que era tão genérico (e achar que fazia parte do misticismo falar trocando a ordem das frases). Mestre Yoda já havia ensinado essa lição, então alguma coisa de sábio o leitor de tarot tinha, nem que fosse a malandragem. Em resumo, a mensagem que ficou é que eu mudaria de cidade, seria uma senhorinha muito rica, mas nunca encontraria um amor para a vida. Seduzida por ideias que já não fazem sentido aos meus trinta anos, me dei por satisfeita e aceitei as conclusões.

Hoje, após mudar de cidade e vivendo uma solitude umami, experimento um certo receio de que ele tenha acertado sobre a minha vida amorosa. Muito embora eu tenha aprendido os caminhos para me bastar, cresci assistindo a comédias românticas clichês e precisei passar por um longo processo de autoconhecimento pra assumir quereres que contradizem a satisfação que senti com a leitura do tarot: o de encontrar o amor por aí, daqueles que eu descreveria como a intimidade de um café da manhã em casa, num domingo qualquer. O amor, após um artigo definido e para usar carinhosamente pronomes possessivos, sem precisar de plural. Daquelas histórias de amor que crescem e amadurecem como as orquídeas: às vezes florido, às vezes sem flores; mas sempre lá, vivo, desde que receba cuidado e atenção. A metáfora não é minha, mas guardei após ser dita por um jardineiro.

Há, no entanto, um quebra-molas em minha frente. Descobri que sou diferente e, por sê-lo, também amo diferente. Por isso, como um filhote de gato abandonado e escondido atrás da roda de um carro, os pêlos da coluna se arrepiam ao pensar em me aventurar de novo. A tentativa é sempre insegura, o que define os rumos da narrativa é a atração ou aversão ao risco (que o animal arisco, quando domesticado, ignora). As diferenças que me fazem sentir tudo tão intensamente talvez sejam as que me afastam de viver uma história de amor em que a mesma quantidade de carros transita pela via de mão dupla, e são justamente elas que me causam o medo do improvável. Acostumada a bradar as músicas de Maria Bethânia sozinha em casa e a apostar muito, muito alto, não posso ignorar o processo de autoconhecimento inerente à solitude e ao amadurecimento que o momento exige.

Talvez seja esse o plot que o cara do tarot de Salvador não revelou: eu me guardaria em uma redoma de vidro, com flores lindas de serem admiradas, mas delicadas demais para enfrentarem os voos das abelhas e borboletas. No fundo, torço pra que ele seja simplesmente um místico fanfarrão e eu apenas uma bêbada idiota que perdeu dinheiro, em que pese o curso da história venha mostrando o contrário e Bethânia sussurre prudência na caixa de som sob a luz amarela da luminária neste sábado à noite em casa.

sábado, 3 de maio de 2025

Parco detalhe

 

Eu já passei por essa esquina um milhão de vezes. Dirigindo, a pé, de carona, no ônibus, por debaixo da terra, voando, invisível... Já passei por aqui e, apesar de achar que já tinha visto de cabo a rabo todos os arbustos distribuídos por ela, eu sabia que faltava alguma coisa para que fôssemos verdadeiramente íntimas. Foi aí que na terça-feira à noite, entre o expediente do dia e o que se alongaria pela madrugada, ouvi com todas as letras a palavra que explicava as percepções que vivenciei todas as vezes que passei pela avenida (e por todos os cantos em que pus os pés).

Foi como um raio caindo em minha cabeça, uma explosão de luz que explicou minhas sombras, até mesmo aquelas sobre as quais eu nunca tinha ouvido falar, mas as sentia intensamente, numa confusão de pensamentos emaranhados que se atropelam a vida inteira, competindo pela minha atenção e interesse, enquanto desejo poder fazer o infinito nesta única existência que ganhei de presente.

Os dias que vieram em seguida foram acompanhados da consciência após o lampejo: tudo agora fazia sentido naquela avenida, e foi por isso que eu revisitei as memórias de cada centímetro de calçada e de asfalto, prestando atenção em cores que não sei o nome, como Adriana Calcanhotto em Esquadros. Eu quero chegar antes, pra sinalizar o estar de cada coisa, fazer prosa sobre o pouco que muito me comove, enquanto tento alcançar meus simultâneos e incansáveis pensamentos que buscam propor um prognóstico dos porquês de eu finalmente entender que não me caibo. Não foi uma escolha, sou deveras e transbordo.

A sinfonia das buzinas para os carros em fila dupla; o casal sentado no boteco que serve prato feito, se deliciando em sorrisos ao encontrar um sintoma de novo amor aos tantos anos; o barulho dos sacos de lixo se movimentando pelo vento das pessoas passando ao lado; o pai que segura na mão do filho miúdo e explica que pra atravessar a rua é preciso passar pela faixa de pedestres. Cada parco detalhe é especial. Observo tudo ao mesmo tempo e guardo o que seria inútil, mas fica bonito quando coloco em formato de história. Absorvo profundamente, como uma overdose da minha sensibilidade e que não escolhi viver: simplesmente sou, simplesmente vejo, simplesmente escrevo. Como que para sobreviver a mim, mas também para conseguir respirar nesse mundo, que me parece tudo e tanto desde sempre.

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela, quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle