quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Overdose



As histórias de amor são tão distintamente iguais. Há algo de especial em cada uma delas, mas todas parecem ser parte de um pout-pourri maluco de comédias românticas, salvo uma diferença: os finais. Nos filmes, depois de muita luta e chororô, ouve-se uma música feliz e estimulante e o mocinho beija a donzela. O filme termina, as luzes acendem, todos seguem suas vidas achando que um dia poderão viver uma comédia romântica. Não, não poderão. O amor reserva sempre um final: o (in)feliz. Esse sentimento é um bicho doido, mas doido mesmo, daqueles que morrem porque perderam a noção na hora de dosar.
Tudo começa com uns goles de destilado aqui e ali. Presa encontrada, olhares cruzados, palavras trocadas. Além das palavras, trocam telefone, facebook, seguem no instagram. Depois de algumas conversas no whatsapp, os mais suscetíveis ao poder do álcool vão perdendo o equilíbrio lentamente, caindo na tentação de amolecer o coração. Os reflexos comprometidos fazem com que o cidadão perca a noção do perigo. Vai se entregando, sem pensar no porvir. 
Até que, lá pela meia-noite, surge um bolo. Um bolo meio misturado, acompanhado de marijuana. Como sempre, tudo começa com aquela famosíssima sensação de bem-estar e euforia, típica dos estágios iniciais dos relacionamentos. O tempo passa mais vagarosamente, assim como quatro beijos podem parecer ser vinte. Novamente, perde-se o equilíbrio. Alucinações de palavras não ditas e sentimentos euforicamente novos causam o constante apetite voraz pela outra pessoa, gostinho de quero-mais, sensação também conhecida como larica. 
Em seguida, o sextasy causa, além dos efeitos colaterais do ecstasy, a fissura física. Não há a necessidade de entrar em detalhes, já que, logo depois, a coca sente-se no dever de causar o aumento da pressão arterial, taquicardia, e uma fissura viril.
Tudo seria muito bom e muito bonito se continuasse nesse rumo. Mas não, o bicho amor não deixa por menos, ele gosta de "surpreender".  O relacionamento começa a desandar, lá se vai uma dose de LSD. Alucinações (que de doces não têm nada) são responsáveis por brigas e brigas, que acarretam a perda de apetite. Noites mal dormidas levam à sonolência do sujeito, burro, que se meteu nessa roubada (eu avisei). 
O relacionamento perde o gosto e termina. Separadamente, resolvem retornar para o velho álcool. Às vezes vivenciam um ou outro flashback. Sentem saudades. Ambos querem se livrar da saudade, esta puta que cobra barato, mas no fim do programa assalta a sua carteira e te deixa na cama dormindo. Esticam o braço, miram na veia e compartilham a seringa, injetam doses cavalares de heroína. A overdose faz com que um seja companheiro do outro (no necrotério). Ah! Eu bem que disse: o amor é uma droga. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Sublimação


Era um belo casal, 
Se amavam, coisa e tal
Se beijavam na sala, na cama e no quintal,
Quando juntos estavam, nada ficava mal

Era um belo casal,
Andavam de mãos dadas
Tinham quentes madrugadas
Fugiam pras escadas
Todas queriam daquele jeito ser amadas

Era um belo casal,
Às vezes algumas briguinhas
Sempre as mesmas ladainhas
De quando em quando umas birrinhas

Eram um belo casal,
Até que foram se desencontrando
Mesmo se amando
Chegou um tempo que não estavam mais se aguentando
O estoque de amor estava se esgotando

Eram um belo casal,
Nas fotos, nos vídeos e na lembrança
Esse romance todo fez uma baita lambança
Com os dois corações de criança

Eram um belo casal,
A rima morreu
O amor idem
O sentimento sólido evaporou
Ficou só a saudade
Já que eles eram um belo casal,
Eram

Espelho plano



Queria ser perigosamente misteriosa, indecifrável, opaca. Queria ser um mapa do tesouro dentro de um labirinto místico, onde o tesouro seria meus sentimentos guardados numa caixa e, ironicamente, o labirinto nunca deixaria ninguém alcançá-la. 
Queria, sim, ser difícil de entender, porque essa vida de transparência não tem a menor graça. Queria estar sempre na contramão do que é previsto. Queria dar um baita trabalho pra qualquer cartomante. Queria ser boa com blefes, saber flertar, saber fingir, ou fingir sem saber que aquilo tudo era mera atuação de uma mente confusa. 
Queria surpreender, saber chegar sem avisar, sem hora marcada, sem antes ter combinado, e, mesmo assim, ser recebida por vivas. Queria que meu olhar fosse um imã. Queria ser irresistivelmente misteriosa, a ponto de nem eu mesma conseguir decifrar minhas emoções. 
Queria despertar a necessidade de conhecimento apenas pelo sorriso. Queria falar por enigmas e responder perguntas com outras perguntas. Queria ser um prato bem temperado, apimentado. Queria ser um banquete de comidas exóticas, sabores novos e frutas afrodisíacas, ao contrário, eu não passo de arroz branco: sem graça, sem cor e só fica bom se estiver acompanhado por algo melhor. 
A verdade é que sou tão clara, mas tão clara, que chego a ser translúcida. Sou como água: inodora, insípida e incolor mas, diferentemente da água, não sou essencial. A emoção da surpresa está em falta. Sou tão previsível que a curiosidade fica entediada. Todos ficam entediados (até eu). Gostaria muitíssimo de não ser a personificação do tédio. Sou tão transparente que até um completo desconhecido saberia meu próximo passo. Minha personalidade carece de uma coisa: sal. 

sábado, 4 de janeiro de 2014

Laranja


Percorri seu pescoço com graciosos beijos em câmera lenta, mordiscadas na orelha fizeram-me subir um pouco mais, seu brinco de pena de pavão esvoaçava e batia levemente em meu rosto, até eu desviar para o lado e nossos lábios se conectarem. Seus cabelos voavam e faziam uma dança louca nos ares, chicoteavam em nossas bochechas e emaranhavam-se em meus dedos. Vez ou outra, abria os olhos de relance para espiá-la, tão linda à luz do luar. 
Minhas mãos realizavam curvas perigosas em alta velocidade. A mudança de solo era constante, mas não havia tempo para parar e tirar a tração, seguíamos naquele rally inusitado: algodão, pele, algodão, pele... Seu corpo com planaltos e depressões tornava tudo muito mais interessante.
Nossas pequenas pausas nos faziam observar o quão lindo estava o céu, as estrelas nos observavam atentamente. Cada movimento era motivo pra aplausos, já que estávamos sob a luz dos holofotes da galáxia. A trilha sonora era a água salgada batendo na areia úmida. 
O vai e vem das ondas era como...
Pele sobre pele por cima da toalha, as estrelas despediam-se, tristes por ter que ir embora antes do fim do espetáculo. O céu ganhava um tom de azul claro, carregando um leve alaranjado. Laranja suave, da cor de seus cabelos. A luz fraca do amanhecer fez-me ver suas sardas, seus olhos castanhos e o quão espetacularmente linda estava exibindo aquelas olheiras de uma noite não dormida. 
Acordei e conferi o celular ao lado da toalha, esperando por uma ligação a noite inteira. Nenhuma ligação perdida. Sob a luz do alaranjado percebi que foi bom sonhar.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Vazio


Você saiu e deixou a porta aberta, o vento frio entrou e gelou a espinha. Pés descalços, saí debaixo das cobertas pra tentar tampar o buraco deixado por você. Não consegui. Na verdade, às vezes consigo, o vento resolve dar uma trégua, até encontrar uma fresta nova por onde entrar.
Você saiu e deixou os porta-retratos na estante, deixou o resto da sua comida preferida na geladeira e sua toalha, ainda úmida, em cima da cama. Você saiu e deixou sua música predileta tocando, deixou meu caderno de rascunhos aberto na página dos versos que fiz pra você, deixou nosso dialeto morrer por desuso. Você saiu e deixou a bagunça por minha conta, achou que eu fosse capaz de fazer a faxina.
O tempo passa e o apartamento continua fedendo à lembranças de um quase futuro perfeito, dos nossos quase beijos de reencontro e dos nossos quase planos concretizados. O vento, vez ou outra, entra pela janela e minha nova obsessão é livrar-me dele, mesmo que pra isso eu precise morrer com o sufoco dos nossos sonhos frustrados. 
Os cacos dos pratos quebrados ainda estão pelo chão, quando você liga, esqueço de mencioná-los. Tudo continua no seu antigo lugar, mas, agora, sem seu devido significado. É tudo vazio, carregado pela falência múltipla de órgãos de um amor que já estava desenganado. Fui só, ao velório e ao funeral. Enterrei-o na cova mais profunda, joguei flores por cima e parti, esperando jamais vê-lo novamente. Porém, vez por outra seu fantasma surpreende-me com uma visita, normalmente é pra anunciar que mudou de nome: Amor já não é mais, é Saudade. É o vazio que sufoca por transbordar. É o oco, tão oco que dá eco.