Você saiu e deixou a porta aberta, o vento frio entrou e gelou a espinha. Pés descalços, saí debaixo das cobertas pra tentar tampar o buraco deixado por você. Não consegui. Na verdade, às vezes consigo, o vento resolve dar uma trégua, até encontrar uma fresta nova por onde entrar.
Você saiu e deixou os porta-retratos na estante, deixou o resto da sua comida preferida na geladeira e sua toalha, ainda úmida, em cima da cama. Você saiu e deixou sua música predileta tocando, deixou meu caderno de rascunhos aberto na página dos versos que fiz pra você, deixou nosso dialeto morrer por desuso. Você saiu e deixou a bagunça por minha conta, achou que eu fosse capaz de fazer a faxina.
O tempo passa e o apartamento continua fedendo à lembranças de um quase futuro perfeito, dos nossos quase beijos de reencontro e dos nossos quase planos concretizados. O vento, vez ou outra, entra pela janela e minha nova obsessão é livrar-me dele, mesmo que pra isso eu precise morrer com o sufoco dos nossos sonhos frustrados.
Os cacos dos pratos quebrados ainda estão pelo chão, quando você liga, esqueço de mencioná-los. Tudo continua no seu antigo lugar, mas, agora, sem seu devido significado. É tudo vazio, carregado pela falência múltipla de órgãos de um amor que já estava desenganado. Fui só, ao velório e ao funeral. Enterrei-o na cova mais profunda, joguei flores por cima e parti, esperando jamais vê-lo novamente. Porém, vez por outra seu fantasma surpreende-me com uma visita, normalmente é pra anunciar que mudou de nome: Amor já não é mais, é Saudade. É o vazio que sufoca por transbordar. É o oco, tão oco que dá eco.
