quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Fácil



Fácil como sentir vontade de chupar um picolé num dia quente de verão, como saber de cor e salteado a letra da minha canção favorita, como comer pipoca no cinema. É muito, muito fácil. É fácil como cair no sono depois de um dia cansativo, como ver meu filme preferido e saber a sequência de cenas, como me encantar por um cachorrinho fofo. É fácil demais. É fácil como a prova da minha matéria favorita, como música chiclete que gruda na cabeça, como sorrir timidamente após ser elogiado, como o gato cai de pé ao pular da estante. É, é fácil.
É fácil ser feliz com você. Muito, muito fácil. Foi tão fácil me apaixonar pelos olhos verdes cujas pupilas enormes ficaram dilatadas ao se declarar, muito fácil me encantar pela fala enrolada e tímida de alguém fechado para os outros mas que, curiosamente, se abriu pra mim. Foi tão simples, leve, único, tal como deveria ser. É fácil admirar alguém incrível por natureza, que faz observações inteligentes sem se perceber e não faz questão de chamar atenção por onde vai. Foi fácil notar que você é dissonante.
É muito fácil gargalhar das piadas ridículas e bestas que fazemos quando estamos sozinhos, fácil demais gostar de quando você começou a usar terno e gravata todo dia, ou de quando você veste bermuda e chinelo. É deveras fácil gostar dos esparsos fios ruivos na barba castanha e dos redemoinhos revoltados no cabelo. É fácil se hipnotizar pelos olhos verdes, mas acho que já falei deles.
Mais fácil ainda é ser feliz todos os dias com você, assim como é fácil sentir vontade de tomar milkshake de Ovomaltine quando vou ao shopping. É fácil gostar das músicas que você gosta, da maneira que você canta quando estamos só nós dois e do jeito que você dança desengonçado e discretamente no ritmo das músicas quando ninguém vê (só eu).
É fácil demais ser fácil pra você. É fácil ser a pessoa mais sortuda do mundo por ter encontrado alguém que faz os dias serem mais simples. É fácil acreditar no amor, fazer planos, sonhar com os pés no chão. As pessoas tentam me convencer que o amor é sofredor e repleto de dificuldades, mas com alguém como você ao meu lado eu só consigo dizer: é fácil (ou deveria ser). 



quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Algodão doce cor-de-rosa


O pipoqueiro estava passando na rua e eu ouvi de longe a típica buzina. Ao avista-lo, logo me animei pra comprar o algodão doce cor-de-rosa que estava pendurado do lado esquerdo do carrinho de madeira. Passei o dia sonhando acordada com um docinho, qualquer que fosse. Estava em um nível de abstinência tão absurdo que até uma barra de cereal de morango ajudaria a ânsia pela glicose no sangue. Ao ver o pipoqueiro e ouvir sua buzina, a boca começou a salivar imediata e instintivamente, pensando no algodão doce cor-de-rosa derretendo e provocando orgasmos às papilas gustativas.
Rapidamente, desfiz o nó do barbante que amarrava o saco do doce comprado e, triunfantemente, enfiei um tufo na boca. O algodão doce derreteu, mas não como as esperadas nuvens explodindo açúcar e grudando nos dentes molares, o gosto era mais parecido com pirulito velho que fica na barraquinha de bombom e ninguém quer, e quando a gente, desafortunadamente, resolve comprar, o pirulito é tão antigo que o papel fica um pouco grudado antes de se soltar.
Foi uma decepção. Esperei tanto do algodão doce, mas ele jogou minhas expectativas dentro do esgoto e me fez recordar que não é só o algodão doce que nem sempre é tão docinho assim.
A partir daquele momento, o dia ensolarado e azul passou ressaltar o calor que faz em dias ensolarados e azuis. Deixei de admirar o contorno das nuvens fofas para perceber que nem sempre as nuvens branquinhas formam desenhos no céu, aliás, elas só me fizeram lembrar do maldito algodão doce com gosto de pirulito passado do dia certo de chupar.
Assim foi no último momento do dia: quando peguei o computador para escrever qualquer coisa que viesse à cabeça, como costumava fazer. O algodão doce, apesar de doce, pareceu aquele pirulito quase passando da validade que ninguém compra na banca de bombom. Mesmo nunca enjoando de algodão doce e sempre querendo mais, aquele, justamente aquele, não estava tão bom assim. O gosto somente lembrava o sabor costumeiro dos melhores algodões doces que provei na vida, mas não chegava aos pés, não se comparava, não derretia e não tinha o sabor certo do açúcar cor-de-rosa. Apesar de doces, as palavras não derreteram como costumavam derreter e não as devorei como costumava devorar. Pelo contrário, larguei um pouco de lado o algodão doce e pensei: o que diabos aconteceu para que ele ficasse com gosto de pirulito velho?
Levantei da cadeira, dei um nó na embalagem e larguei de mão a nuvem cor de rosa. Fui ao banheiro escovar os dentes e pensei: talvez eu não tenha mais o jeito certo para me deliciar com algodão doce.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Areia movediça



O despertador toca incansavelmente: é hora de levantar do sofá na zona de conforto e bater perna em algum lugar por aí. Tão difícil é espanar a poeira que acumulou nas calças durante tanto tempo sentado e perseguir novos objetivos. Pra quem se acostumou a estar sentado, é deveras doloroso abrir mão do certo e aceitar um duvidoso.
Todo o brilho se foi, as flores murcharam, a vontade sumiu e a desmotivação se instaurou no organismo. Os pés estão presos à raízes invisíveis, impedindo o resto do corpo de voar. Quiçá mais confortável é sonhar deitado no sofá, mas de que adianta sonhar e não ter forças pra levantar e realizar? Um dia ouvi que, se fosse pra sonhar, deveria ser de olhos abertos, para não cochilar e esquecer de concretizar.
Invisível até para mim mesmo. Desacreditado dos dias melhores e das reviravoltas. Cansado da rotina, fatigado das ladainhas. Exausto do primeiro fio de cabelo ao dedão do pé. Quão maior eu poderia ser se nem eu mesmo acredito em meu fermento?
Dividido pela ânsia de conquistar o mundo e a âncora do medo. Tolhido pela tolice de não tentar, não arriscar. Superestimando minha covardia e aceitando a verdade inverossímil da incapacidade que criei em minha cabeça. Atolado até a cintura nessa areia movediça chamada fracasso.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Cotidiano



Todo dia, na hora do almoço, ele chega desfazendo o nó da gravata e desabotoando a camisa social. Joga o terno na cadeira da escrivaninha, faz cara de cansado, deita na cama e começa a assistir a um vídeo qualquer no Youtube. Todo dia, após o almoço, ele pede licença pra sair da mesa, mesmo sabendo que ela vai dizer não e ele vai rir e sair mesmo assim. Todo dia, mas todo santo dia, antes de sair de casa após o almoço, ele enrola e pede mais dez minutinhos. Todo dia ele e ela discutem sobre quem vai dirigir, o banco do passageiro é extremamente disputado. Todo dia ele implica com coisinhas pequenas, só pra aborrecer de leve e soltar um risinho de satisfeito, com o ar de missão cumprida. Todo dia ela pede docinho, mas não é todo dia que ele dá, às vezes, num lampejo de consciência, ele diz: “amor, e a academia?”. Todo dia, desde o dia em que resolveram fazer parte da vida um do outro, ele prova que é possível viver em um elevador amoroso que só sobe, repetindo o clichê de se apaixonar pela mesma pessoa todos os dias. Todo dia ele a faz lembrar daquele rapaz que ela conheceu, magricelo e narigudo, mas com olhos verdes cintilantes (já que todo dia, sem exceção, ele reclama da barriguinha saliente, fruto de alguns abusos gastronômicos). Mesmo assim, todo dia eles arranjam uma desculpinha esfarrapada pra não ir à academia. Todo dia ela percebe que ele mudou de shampoo, porque o cabelo que antes cheirava a Pantene passou a exalar Clear Men. Todo dia ela reflete o quanto eles cresceram juntos, como passaram do sapatênis e do all star vermelho ao sapato social e ao scarpin. Todo dia, por mais que seja um pleonasmo descarado e sem vergonha, ela confirma a certeza de que ele é muito mais do que todos os protagonistas de seus romances, escritos e guardados a sete chaves. Todo dia ela pensa em como escrever sobre ele, mas normalmente empaca na hora de começar. Todo dia ela o observa discretamente e sorri pra si mesma, agradecendo pelo amor calmo e sereno que teve a sorte de encontrar. Todo dia ela escreve no caderninho da gratidão “motivos para agradecer: ter encontrado você”.