terça-feira, 25 de maio de 2021

Aurora



Há muita poesia no céu
Durante os primeiros minutos da aurora
A pincelada, a passagem, a passarada
Sinestesia do enxergar e ouvir
O mudar de cor em um piscar de olhos, 
Cujos pares são incapazes de 
Capturar todas as nuances espontâneas
E impulsivas 
De quando ele nasce
Enquanto isso, 
Eles acordam e cantam vibrantes notas, 
Que ouvido absoluto algum 
Seria capaz de reproduzir 
Em qualquer que fosse o instrumento
A orquestra do amanhecer é inusitada: 
A pincelada, a passagem, a passarada


5h50min.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Para dizer o mínimo

Gil e Chico cantaram que é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar, mas o que seria a vida, senão a tentativa constante de preencher o espaço ocupado somente pelo ar? A vida é vazia, justamente por ser tão cheia. Sem tempo para apurar o sabor do líquido no copo, engolimos de uma vez as verdades de um suco cheio de caroços.

A agenda está cheia de ar e de encontros inúteis, conversas fúteis, em terrenos que seriam férteis se não estivessem sobrecarregados e sugados. Na ânsia de visitar o museu de grandes novidades, o futuro repete o passado, disse Cazuza. A questão é que, mesmo diante de todas as primeiras vezes, sinto saudade do líquido que preenchia o copo... que agora só tem ar.

Para disfarçar a dor e anestesiá-la, encho o copo de vinho. Queria dizer mais, mas tento verbalizar apenas o mínimo. Se escrever é expor as entranhas, fujo de mim mesma e me calo pra esconder de mim meus próprios calos, que não sei bem onde ficam. O copo está cheio de ar, por minha escolha: uma metade cheia, uma metade vazia; uma metade tristeza, uma metade alegria... é a tal da magia da verdade inteira, que não sei onde encontrar, porque estou fracionada em cada uma das minhas desassossegadas dispersões. Sou despida de vergonha de assumir o não saber, por isso caminho em silêncio, tentando afrouxar a garganta. Para dizer o mínimo, molho os pés na água cantarolando Cartola sob a afrontosa luz da lua minguante: deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar sorrir pra não chorar.



terça-feira, 11 de maio de 2021

Moinho

Era tarde de domingo e fazia sol, o céu azul mentia sobre o humor nublado. Na mesa, um livro pela metade, assim como o coração que batia dentro do seu tórax. De óculos escuros, escondia as olheiras e bebia um vinho rosê, afundado em gelo, tal como a sua própria companhia. Ao lado direito, o Theatro da Paz falava com ela, insinuando que os romances de repertório dançados no palco italiano são inversamente previsíveis em relação aos dançados na vida real. Quando não há música, não há dança... E bebia o rosê na companhia de Bibiana e Belonísia (dessa vez, ambas em silêncio), entre a bohemia e a poesia clássicas da solitude e do cenário.

O vestido lilás, de cor tão fria quanto o gelo do balde, como não esperava que estivesse seu peito naquele dia... A ânsia pela solidão a colocou na cadeira ao sudoeste de Ruy Barata, na companhia da Praça da República, cuja tarde do domingo azul não era tão aprazível quanto os olhos da Belle de Jour de Alceu. Submersa em cores frias, segurando a rolha da garrafa que representava sua ilha, sabendo que em pouco tempo não seria mais o que era naquele maio.

Cartola invadiu aquele período vespertino, deslizando em seus ouvidos e denunciando que o mundo é um moinho... Se em cada esquina cai um pouco de nossas vidas e em pouco tempo não seremos mais o que somos, quem somos nós? Se o mundo é um moinho e vai triturar meus sonhos, por que hei de ainda sonhar? A linha é tênue entre narrador e personagem, mas hoje não é dia para obedecer à risca a gramática da Língua Portuguesa.

Os Engenheiros do Hawaii também manifestaram a gravidade dos moinhos no psicológico dos otários, que são borboletas dentro do aquário, assim como ela, naquela tarde. Tudo bem, até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento... Mas nem o amor pelas causas perdidas impediu que ela visse o moinho como moinho, que é a vida, cujo abismo ela cavou com os próprios pés.

Quem seria Dom Quixote se não vivesse as fantasias dos romances de cavalaria? Ele precisou da magia para se ressignificar, ainda que apenas ele mesmo se enxergasse enquanto tal... Franzino e sonhador, também precisou enfrentar, à sua maneira, os moinhos – causando risos, é verdade, mas assumindo quem era para si.

A grande insanidade de Dom Quixote – seja no clássico de Cervantes, no ballet de repertório de trilha sonora composta por Ludwig Minkus, na música do Engenheiros ou em qualquer outra metáfora – talvez seja a salvação para os que fincaram os pés no chão por tempo indeterminado, até que o chão não os suportou mais e eles foram forçados a caminhar na areia movediça da incerteza. Como ela, com a taça de rosê e o livro na tarde do domingo azul.

Não há o que dizer, mas as lágrimas rolavam por baixo dos óculos escuros e deslizavam pelo vestido lilás, ao som de Cartola, que batia em seu rosto dizendo que de cada amor ela herdaria apenas o cinismo. Doía. Profundamente. Se o mundo é um moinho, ela precisa percorrê-lo, conhecê-lo, explorá-lo. Com suas próprias pernas e olhos, sentindo o cheiro da maré e o calor doloroso do sol: só. Se o mundo é um moinho, seu vento produz energia – e era o que ela precisava. Ainda é cedo, amor. Mas ainda é tempo, mesmo sem saber o rumo.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Perrengue quase chique

Era uma tarde comum na metrópole paraense e, como de costume, o céu começou a se pintar de cinza, com a sobreposição das nuvens carregadas, anunciando o que por aqui chamamos de toró. Estava na rua, em meu carro popular, dirigindo rumo a algum lugar que não lembro mais, assim como não lembrei que bastam cinco gotas de água para que Belém deixe de ser a Cidade das Mangueiras e se transforme na Veneza Paraense. Dito e feito: cheguei em uma rua que estava debaixo d’água.

Sem saída, engatei a primeira marcha e fomos, valentes, enfrentar o rio que se formou por cima do asfalto. O problema é que subestimei a profundidade, achando que meu Gol daria pé (ou rodas...). De repente, ele começou a gritar, fazendo um barulho que parecia que o motor estava pedindo socorro. Calma! Calma! Rapidamente, virei à esquerda e subi em um posto de gasolina que fica um pouco mais para cima do nível do mar (trocadilho inevitável).

Não demorou muito tempo para eu perceber que a água não desceria tão cedo e, ou eu teria que transformar meu carro em lancha, ou precisaria esperar a enchente baixar... Por isso, aceitei o meu destino, sentei no banco do motorista e resolvi aguardar.

O frentista, observador, bateu no vidro e avisou que a placa do carro tinha caído durante a batalha. Pobre Gol popular... agora estava banguela e afogado. Foi nesse momento que descobri uma ocupação que não conhecia ainda, muito comum na região das altas cheias da Veneza Amazônica: os caçadores de placa. Pois bem, vamos lá. Preciso explicar o que são, embora o nome já entregue um pouco a sua atividade. Caçadores de placa são os bravos homens que entram na maré urbana, dando braçadas para encontrar tesouros perdidos: as placas dos veículos banguelas.

Admirada com a coragem, contratei um caçador, afinal de contas, não sou o Michael Phelps, tampouco o Gabriel Medina. Claro que nada é de graça nessa vida: caso encontrada a placa, a recompensa seria um vintão para o caçador. Ótimo, justo. Sentei no banco do carro e resolvi aguardar, tentando enxergar de longe o reflexo prateado da placa com a ponta roída por um cachorro.

Duas horas se passaram, a água não baixou e a placa não foi encontrada. Estava calor, porque Belém é quente como o sol e eu estava com o ar condicionado desligado, afinal de contas, está quase sendo necessário fazer um empréstimo no banco para dar conta de pagar a gasolina.

O posto onde eu estava ilhada era na esquina do nada com lugar nenhum, então não tinha uma distração. A bateria do celular estava acabando, eu não tinha um livro no carro pra ler, sequer tinha uma conveniência pra comprar uma batatinha frita e um achocolatado. Espera, espera, espera. Tédio.

Tive uma ideia brilhante! Vi uma luz no meio do nublado da tarde: uma lotérica no posto de gasolina. Olhei minha carteira e percebi que tinha vinte e nove reais em dinheiro, sendo vinte para recuperar a placa e me sobrariam nove. Loteria não é gasto, é investimento – tentei justificar. O problema é investir no escuro, porque não se sabe o futuro, mas a gente mora no Brasil e precisa contar com a sorte de vez em quando.

Num ímpeto de esperteza, gastei toda a minha fortuna em jogos de loteria, com a expectativa futuramente comprar um carro-lancha, adaptável à realidade de Belém, já que Nilson Chaves estava certíssimo e os rios da minha aldeia são maiores que os de Fernando Pessoa. Usei os números da sorte do meu horóscopo e apostei, confiante.

Saindo da lotérica, o caçador gritou: “moça, achei a sua placa!”. Fui embora rindo, aguardando o resultado, que sairia às sete da noite. Consegui errar todos os números, meu horóscopo estava super equivocado. Foi aí que percebi que o meu prêmio do dia foi encontrar a placa do carro e ganhar uma história pra contar.