terça-feira, 11 de maio de 2021

Moinho

Era tarde de domingo e fazia sol, o céu azul mentia sobre o humor nublado. Na mesa, um livro pela metade, assim como o coração que batia dentro do seu tórax. De óculos escuros, escondia as olheiras e bebia um vinho rosê, afundado em gelo, tal como a sua própria companhia. Ao lado direito, o Theatro da Paz falava com ela, insinuando que os romances de repertório dançados no palco italiano são inversamente previsíveis em relação aos dançados na vida real. Quando não há música, não há dança... E bebia o rosê na companhia de Bibiana e Belonísia (dessa vez, ambas em silêncio), entre a bohemia e a poesia clássicas da solitude e do cenário.

O vestido lilás, de cor tão fria quanto o gelo do balde, como não esperava que estivesse seu peito naquele dia... A ânsia pela solidão a colocou na cadeira ao sudoeste de Ruy Barata, na companhia da Praça da República, cuja tarde do domingo azul não era tão aprazível quanto os olhos da Belle de Jour de Alceu. Submersa em cores frias, segurando a rolha da garrafa que representava sua ilha, sabendo que em pouco tempo não seria mais o que era naquele maio.

Cartola invadiu aquele período vespertino, deslizando em seus ouvidos e denunciando que o mundo é um moinho... Se em cada esquina cai um pouco de nossas vidas e em pouco tempo não seremos mais o que somos, quem somos nós? Se o mundo é um moinho e vai triturar meus sonhos, por que hei de ainda sonhar? A linha é tênue entre narrador e personagem, mas hoje não é dia para obedecer à risca a gramática da Língua Portuguesa.

Os Engenheiros do Hawaii também manifestaram a gravidade dos moinhos no psicológico dos otários, que são borboletas dentro do aquário, assim como ela, naquela tarde. Tudo bem, até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento... Mas nem o amor pelas causas perdidas impediu que ela visse o moinho como moinho, que é a vida, cujo abismo ela cavou com os próprios pés.

Quem seria Dom Quixote se não vivesse as fantasias dos romances de cavalaria? Ele precisou da magia para se ressignificar, ainda que apenas ele mesmo se enxergasse enquanto tal... Franzino e sonhador, também precisou enfrentar, à sua maneira, os moinhos – causando risos, é verdade, mas assumindo quem era para si.

A grande insanidade de Dom Quixote – seja no clássico de Cervantes, no ballet de repertório de trilha sonora composta por Ludwig Minkus, na música do Engenheiros ou em qualquer outra metáfora – talvez seja a salvação para os que fincaram os pés no chão por tempo indeterminado, até que o chão não os suportou mais e eles foram forçados a caminhar na areia movediça da incerteza. Como ela, com a taça de rosê e o livro na tarde do domingo azul.

Não há o que dizer, mas as lágrimas rolavam por baixo dos óculos escuros e deslizavam pelo vestido lilás, ao som de Cartola, que batia em seu rosto dizendo que de cada amor ela herdaria apenas o cinismo. Doía. Profundamente. Se o mundo é um moinho, ela precisa percorrê-lo, conhecê-lo, explorá-lo. Com suas próprias pernas e olhos, sentindo o cheiro da maré e o calor doloroso do sol: só. Se o mundo é um moinho, seu vento produz energia – e era o que ela precisava. Ainda é cedo, amor. Mas ainda é tempo, mesmo sem saber o rumo.

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