Era uma tarde comum na metrópole paraense e, como de costume, o céu começou a se pintar de cinza, com a sobreposição das nuvens carregadas, anunciando o que por aqui chamamos de toró. Estava na rua, em meu carro popular, dirigindo rumo a algum lugar que não lembro mais, assim como não lembrei que bastam cinco gotas de água para que Belém deixe de ser a Cidade das Mangueiras e se transforme na Veneza Paraense. Dito e feito: cheguei em uma rua que estava debaixo d’água.
Sem saída, engatei a primeira marcha e fomos, valentes, enfrentar o rio que se formou por cima do asfalto. O problema é que subestimei a profundidade, achando que meu Gol daria pé (ou rodas...). De repente, ele começou a gritar, fazendo um barulho que parecia que o motor estava pedindo socorro. Calma! Calma! Rapidamente, virei à esquerda e subi em um posto de gasolina que fica um pouco mais para cima do nível do mar (trocadilho inevitável).
Não demorou muito tempo para eu perceber que a água não desceria tão cedo e, ou eu teria que transformar meu carro em lancha, ou precisaria esperar a enchente baixar... Por isso, aceitei o meu destino, sentei no banco do motorista e resolvi aguardar.
O frentista, observador, bateu no vidro e avisou que a placa do carro tinha caído durante a batalha. Pobre Gol popular... agora estava banguela e afogado. Foi nesse momento que descobri uma ocupação que não conhecia ainda, muito comum na região das altas cheias da Veneza Amazônica: os caçadores de placa. Pois bem, vamos lá. Preciso explicar o que são, embora o nome já entregue um pouco a sua atividade. Caçadores de placa são os bravos homens que entram na maré urbana, dando braçadas para encontrar tesouros perdidos: as placas dos veículos banguelas.
Admirada com a coragem, contratei um caçador, afinal de contas, não sou o Michael Phelps, tampouco o Gabriel Medina. Claro que nada é de graça nessa vida: caso encontrada a placa, a recompensa seria um vintão para o caçador. Ótimo, justo. Sentei no banco do carro e resolvi aguardar, tentando enxergar de longe o reflexo prateado da placa com a ponta roída por um cachorro.
Duas horas se passaram, a água não baixou e a placa não foi encontrada. Estava calor, porque Belém é quente como o sol e eu estava com o ar condicionado desligado, afinal de contas, está quase sendo necessário fazer um empréstimo no banco para dar conta de pagar a gasolina.
O posto onde eu estava ilhada era na esquina do nada com lugar nenhum, então não tinha uma distração. A bateria do celular estava acabando, eu não tinha um livro no carro pra ler, sequer tinha uma conveniência pra comprar uma batatinha frita e um achocolatado. Espera, espera, espera. Tédio.
Tive uma ideia brilhante! Vi uma luz no meio do nublado da tarde: uma lotérica no posto de gasolina. Olhei minha carteira e percebi que tinha vinte e nove reais em dinheiro, sendo vinte para recuperar a placa e me sobrariam nove. Loteria não é gasto, é investimento – tentei justificar. O problema é investir no escuro, porque não se sabe o futuro, mas a gente mora no Brasil e precisa contar com a sorte de vez em quando.
Num ímpeto de esperteza, gastei toda a minha fortuna em jogos de loteria, com a expectativa futuramente comprar um carro-lancha, adaptável à realidade de Belém, já que Nilson Chaves estava certíssimo e os rios da minha aldeia são maiores que os de Fernando Pessoa. Usei os números da sorte do meu horóscopo e apostei, confiante.
Saindo da lotérica, o caçador gritou: “moça, achei a sua placa!”. Fui embora rindo, aguardando o resultado, que sairia às sete da noite. Consegui errar todos os números, meu horóscopo estava super equivocado. Foi aí que percebi que o meu prêmio do dia foi encontrar a placa do carro e ganhar uma história pra contar.
