segunda-feira, 25 de julho de 2022

Epílogo

 

Ainda não sei ser matinal, mas já abdico de um hambúrguer por um prato de salada. Escuto as mesmas músicas. Outras também. As mesmas e outras, misturadas, porque sou a construção do que fui e do que tento ser hoje. Ouço a playlist em italiano torcendo para absorver o idioma, porque estou mais longe do que nunca da dupla cidadania. Uma banda semi-pop adolescente, de ritmo que não sei nomear e batidas de curtição em festival, com um copo na mão e um cordão cheio de logomarcas pendurado no pescoço. Nunca fui, vi apenas fotos dos looks arrumados e divulgados para a multidão dos likes.

Agora estou eu, aqui, colocando-me à prova diante do desconhecido, sem saber direito como agir ou como falar, porque não sei ser outra coisa senão eu mesma. Com meu jeito espontâneo, que solta as palavras que estão na ponta da língua, escreve textos muito mais pelo momento do que pela pessoa, sente o vento fugindo das mãos enquanto dirige em alta velocidade pela via expressa.

Estou descobrindo como é ser eu, em todas as minhas nuances, gargalhadas com a arcada dentária escancarada, piadas ridículas, madrugadas trabalhando, corridas noturnas na praça, terapia semanal, quadros pintados em uma profusão de cores, roupas escolhidas a dedo para expressar minha personalidade. Cansei de me conter para caber, quero transbordar meu eu por onde passar. Imprimir minha digital em todo canto que for, sem medo de falar demais ou usar muitas cores. Quero ser bem quista pelo que sou, e pelo que ainda vou descobrir sobre mim, porque, nesse momento, não há alguém mais importante no mundo do que a mulher que tento resgatar e salvar: eu mesma.

Para onde vou? Não sei, mas espero voar sem medo das manobras, como Fernão Capelo Gaivota e sua impetuosa coragem de transcender. Com as raízes levantadas, vou seguir viagem para onde eu possa ser um vitral de versões minhas que, iluminado pelo sol, promove efeitos de luzes espetaculares e coloridas. De dentro para fora. A incerteza não me constrange, porque agora decidi explorar todos os caminhos diante de mim e sei que sou capaz. Dirigindo em alta velocidade e com a mão esquerda para fora da janela, não dá pra segurar o vento. Eu sou o vento.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Garça da crônica

Hoje, sozinha, saí pra ler o pôr-do-sol e ver umas crônicas. Sentei em um banco qualquer na Casa das Onze Janelas e comecei a ler as pessoas. Vários casais apreciando drinks e ouvindo o saxofonista dar seu show, alguns jovens que estavam ali só por estar (como eu), debutantes fazendo fotos... Uma leitura de cenário que a gente só tem quando se põe a observar o qualquer. Em um dado momento, uma mulher desconhecida pediu meu banco emprestado, pois a mãe dela completaria 80 anos e estava fazendo um book. A senhorinha chegou, toda garbosa, fazendo poses e dando risadas, comemorando as oito décadas de vida. Olhando a cena, ri junto com aquelas mulheres. Achei tão afetuosas a senhorinha, a fotógrafa e a filha, que, de certa forma, senti que fazia parte do momento só por ter emprestado meu banco. Valorizei demais a vida, bem ali, com o sol das 17h ardendo nas costas. Pedi para a mulher desconhecida tirar uma foto minha, porque também queria registrar a bonita tarde. Ela virou pra mim e disse: roda (fazendo círculos com o dedo indicador). Apesar de me sentir um pouco idiota, comecei a rodar e rir para a desconhecida. Ela devolveu meu celular, agradeci, e foi embora. Voltei ao banco e à geração dos "Sabiás da Crônica", que pavimentaram o caminho dos cronistas, embelezando o corriqueiro com a bohemia carioca. Pedindo licença à minha modéstia, gostaria de dizer que hoje me assumi "Garça da Crônica", por narrar timidamente a bohemia belenense em versiprosa (apesar de não ser lida). Se vocês me perguntassem qual é meu sonho de vida, diria que é ser cronista. Acabei como professora de processo civil e advogada, mas tudo bem... Tenho coração de literata. O sol se pôs por trás da nuvem, fazendo chincana com a minha cara, que saí só para vê-lo ("difícil ver o sol tocar o horizonte", disseram pelo meu whatsapp). Perdoei o sol, porque a tarde foi linda e a solitude é deliciosa que nem um pudim de café, como nas crônicas, em que "o extraordinário mergulha no cotidiano e o prosaico deságua no sagrado" (Augusto Massi, no prefácio do livro citado, que descobri pelo podcast da 451).


Texto escrito em 16/07/2022,

sobre uma tarde bonita em Belém do Pará.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Aquarela de café

A fluidez da tinta aquarelável na ponta do pincel denuncia o desafio que é encostar levemente no papel, vendo um pingo se expandir como quando um copo desajeitadamente vira sobre a mesa. Sem ter consciência da delicadeza da arte, desafiei-me a aquarelar o café, que foi do coador ao godê em poucos instantes.

O godê, dividido em seis círculos, como se estivesse formando o centro de uma flor e suas pétalas, seria o espaço para diluir o pó de café em água, transformando-o em diferentes tonalidades. Quanto mais pó, mais escura a tinta. Quanto mais água, mais diluída. Quatro eram os materiais para a arte amadora: papel, pincel, café e água. Com esses mesmos instrumentos, seria possível fazer uma porção de coisas, inclusive escrever saboreando um café quente recém passado.

Ao molhar a ponta do pincel no marrom claro e encostar no papel, logo vi a tinta fluindo mais do que eu esperava e se espalhando sem balizas. O fundo quase bege e o papel timidamente encharcado sussurravam: vai com calma. Tentei de novo, num marrom que era quase o tom de uma bermuda cargo, mas que como tinta não representava tanta cafonice. Pintei levantando o queixo de forma altiva, do jeito de quem acha que sabe das coisas, e novamente a tinta se espalhou mais que o esperado, formando qualquer borrão diferente de uma rosa, que era o que eu tentava rascunhar.

Por perceber que não conseguiria sozinha, precisei levantar a mão e fazer o que evito sempre: perguntar a alguém mais experiente por onde é que se vai. Se tivesse perguntado mais, talvez tivesse tropeçado menos, errado menos os caminhos, molhado menos o papel, pintado flores que se parecessem mais com rosas. Nesse afã de ser sabida e metida a artista é que descobri que sou coisa alguma, pois não passo de um punhado de coragem misturada a uma cara de pau inabalável.

Como a tinta marrom médio que toca no papel e se espalha, percebi que nunca conseguirei prever o que será pintado, a menos que tenha calma para controlar a respiração, o pulso esquerdo e os impulsos. Falta-me habilidade com a fluidez do inusitado, com a dança estranha do pincel na página e com a tinta desobediente fazendo o que bem entende. A vida é fluida como a aquarela, que precisou se misturar ao café para me mostrar que, assim como no hiato entre papel e pincel, preciso aprender a improvisar se minhas folhas pintadas não parecerem folhas.

Foi desse jeito que aprendi a usar o marrom escuro, destinado aos detalhes e às impressões finais do meu jardim subversivo às lições de botânica. Errei tantas vezes quantas tentei, mas, ao final, ficou bonita a pintura. Escrevi desajeitadamente a palavra “criar”, porque foi o que fluiu e era o que eu gostaria de fazer na vida. Criar aquarelas de café, mil versões de mim, crônicas sem leitores e sonhos que ainda não realizei. Viver sutilmente, sorrindo do jeito que devo manusear o pincel: levemente e com pausa para respirar. Quem sabe da próxima vez eu consiga imprimir à arte a resiliência com a qual pretendo levar a vida daqui pra frente. Enquanto isso, ouvindo Beatles, aproveito o amargor da deliciosa mistura de cevada com café para terminar a noite.