A fluidez da tinta aquarelável na
ponta do pincel denuncia o desafio que é encostar levemente no papel, vendo um
pingo se expandir como quando um copo desajeitadamente vira sobre a mesa. Sem
ter consciência da delicadeza da arte, desafiei-me a aquarelar o café, que foi
do coador ao godê em poucos instantes.
O godê, dividido em seis
círculos, como se estivesse formando o centro de uma flor e suas pétalas, seria
o espaço para diluir o pó de café em água, transformando-o em diferentes
tonalidades. Quanto mais pó, mais escura a tinta. Quanto mais água, mais
diluída. Quatro eram os materiais para a arte amadora: papel, pincel, café e
água. Com esses mesmos instrumentos, seria possível fazer uma porção de coisas,
inclusive escrever saboreando um café quente recém passado.
Ao molhar a ponta do pincel no
marrom claro e encostar no papel, logo vi a tinta fluindo mais do que eu
esperava e se espalhando sem balizas. O fundo quase bege e o papel timidamente
encharcado sussurravam: vai com calma. Tentei de novo, num marrom que era quase
o tom de uma bermuda cargo, mas que como tinta não representava tanta cafonice.
Pintei levantando o queixo de forma altiva, do jeito de quem acha que sabe das
coisas, e novamente a tinta se espalhou mais que o esperado, formando qualquer borrão
diferente de uma rosa, que era o que eu tentava rascunhar.
Por perceber que não conseguiria
sozinha, precisei levantar a mão e fazer o que evito sempre: perguntar a alguém
mais experiente por onde é que se vai. Se tivesse perguntado mais, talvez
tivesse tropeçado menos, errado menos os caminhos, molhado menos o papel,
pintado flores que se parecessem mais com rosas. Nesse afã de ser sabida e
metida a artista é que descobri que sou coisa alguma, pois não passo de um
punhado de coragem misturada a uma cara de pau inabalável.
Como a tinta marrom médio que toca
no papel e se espalha, percebi que nunca conseguirei prever o que será pintado,
a menos que tenha calma para controlar a respiração, o pulso esquerdo e os
impulsos. Falta-me habilidade com a fluidez do inusitado, com a dança estranha
do pincel na página e com a tinta desobediente fazendo o que bem entende. A
vida é fluida como a aquarela, que precisou se misturar ao café para me mostrar
que, assim como no hiato entre papel e pincel, preciso aprender a improvisar se
minhas folhas pintadas não parecerem folhas.
Foi desse jeito que aprendi a
usar o marrom escuro, destinado aos detalhes e às impressões finais do meu
jardim subversivo às lições de botânica. Errei tantas vezes quantas tentei,
mas, ao final, ficou bonita a pintura. Escrevi desajeitadamente a palavra “criar”,
porque foi o que fluiu e era o que eu gostaria de fazer na vida. Criar aquarelas
de café, mil versões de mim, crônicas sem leitores e sonhos que ainda não realizei. Viver sutilmente, sorrindo do jeito que devo manusear o pincel: levemente e com pausa para respirar. Quem sabe da próxima vez eu consiga imprimir à arte a resiliência com a qual pretendo levar a vida daqui pra
frente. Enquanto isso, ouvindo Beatles, aproveito o amargor da deliciosa mistura de cevada com café para terminar a noite.
