domingo, 14 de agosto de 2022

Compasso

Se no pentagrama é onde o compasso abriga cada nota, o parágrafo é o compasso da palavra. Escolhendo o compasso, define-se o ritmo da melodia, os passos da dança e a emoção das palavras que serão escritas. Com um pentagrama em branco, sem compasso definido e sem ler há tempos partituras, resta apreciar Mozart enquanto reparo bem nos detalhes amadeirados e barrocos ao fundo da igreja, ou mesmo nas unhas roídas da cadeira ao lado. Como cheguei até ali? É o que vamos descobrir.

Numa segunda-feira qualquer de junho, bati o ponto no trabalho antes da hora e saí correndo para o Theatro da Paz, na esperança de conseguir um dos cinquenta ingressos para o concerto de jazz exclusivo que ocorreria naquele dia. Cheguei na bilheteria e o avistei de longe, vestindo uma camisa social azul clara, com as mangas dobradas em um visual despojado. Envergonhada, fui direto para o final da fila fingindo que não o vi, apesar de admirar o sorriso e simpatizar com sua inteligência desde o primeiro dia de aula na faculdade.

O funcionário da bilheteria surgiu, de camisa preta e calça jeans, informando a todos que os cinquenta ingressos tinham terminado. Ele olhou pra mim, riu discretamente e disse: é, parece que ficamos para fora. Por dentro, agradeci pela gentileza do cumprimento, pois eu estava tímida demais para ir até ele; por fora, ri também e lamentei pelo azar de não chegarmos mais cedo.

Naquela coincidência residiu o primeiro “e se?”. Um fim de tarde na minha esquina favorita na cidade, o Bar do Parque funcionava lindamente (como sempre, desde 1904), o céu azul Paysandu denunciava que não choveria à noite. Ele perguntou o que eu faria depois dali, falei que iria trabalhar e perguntei quais eram os planos dele. Ele respondeu que deixou tudo organizado no escritório, para ficar livre após o concerto. Demos de ombros e nos despedimos (apesar de, por dentro, torcer fortemente para que ele me convidasse para tomar uma gelada no charmoso Bar do Parque à nossa frente).

Por mensagem, tomei coragem de comentar com ele que aconteceria um concerto no sábado, na reabertura de uma casa tradicional da cidade. Ele respondeu que a banda de jazz tocaria no Theatro na quinta-feira, e combinamos que ele me avisaria o horário que fosse comprar o ingresso dele, para que eu conseguisse comprar o meu também. Era uma programação individual dele, e minha, mas que, de certa forma, poderia ser feita na companhia um do outro. Acabou que ele comprou dois ingressos, e eu também... e assistimos ao concerto juntos. Terminamos a noite conversando no Bar do Parque, ao som de música popular brasileira, mas infelizmente sem Adriana Calcanhotto ou Marisa Monte, porque não deu tempo.

Na semana seguinte, lá estávamos nós, assistindo ao concerto da orquestra sinfônica em uma das muitas igrejas lindas de Belém, analisando a arquitetura barroca do lugar, a trilha sonora de Mozart e as unhas terrivelmente roídas ao meu lado. O tipo de programação que costumo fazer sozinha, mas que felizmente estava acompanhada pelo simpático sorriso que costumava sentar na primeira carteira da sala de aula.

Eu não sabia que ele gostava de música clássica, tampouco que sabia tanto sobre Belém, muito menos que nossos beijos se encaixariam como se tivessem sido escritos em uma partitura. Existem muitos lados bons de conhecer pela segunda vez alguém, um deles é descobrir se eu estava certa sobre as impressões que tive sobre ele quando o conheci pela primeira vez. É como se o segundo ato do concerto fosse absolutamente inesperado, mas igualmente agradável. Terminamos a noite apreciando o rio e as embarcações iluminadas que por ele passaram, entre cabelos embaraçados pelo vento e sorrisos charmosos, aproveitando o que nos proporcionou a coincidência.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Disforia

 

Parece que, do centro para fora, estou congelando. Ao mesmo tempo, de fora para dentro, estou derretendo. Um nó na garganta que não se desfaz. Eu não sei o porquê, não sei o gatilho. Só acontece, do nada, sem aviso prévio ou explicação posterior. Quando deito na cama, parece que meu corpo e o colchão têm um ímã tão forte que não consigo levantar, mesmo que eu queira fazer coisas, quaisquer que sejam. É como se estivesse subindo a serra à noite com a estrada cheia de neblina, tremendo de frio e morrendo de calor simultaneamente. Parece que as larvas me corroem por dentro e não consigo me livrar delas, mesmo que tente ininterruptamente.

Eu me esforço pra ser feliz. Escuto as músicas que costumava gostar, leio os livros pelos quais costumava me interessar, faço planos que em tempos normais me dariam tesão em realizar. Mas continuo apática. Catatônica. Gelada e quente. Trêmula da cabeça aos pés. Sem conseguir sequer chorar ou dar um passo adiante. É um querer da morte, mas sem morrer. Uma singela sensação de inexistência ou de sumiço.

Quando lembro daquela pessoa que costumava ser falante e espontânea, desconheço-a. Parece que foi outra encarnação, ou simplesmente um personagem que criei e matei dentro de mim enforcada por esse nó de marinheiro. Eu deveria estar feliz, mas acho que não sei mais. A vida está simpática e agradável, eu é que me perdi. Estou dentro de um redemoinho de mim mesma. Sou incapaz de avançar ou de terminar as coisas. Como este texto, que deixo pela metade, antes mesmo de chegar à ansiedade.

(dia/mês/ano)

Outro dia, mesma sensação.

Há quase uma semana com o choro engasgado, em um blackout de felicidade. Enxergo apenas círculos concêntricos em tons de preto e escuridão, como quando era criança e esfregava os olhos até ter essa sensação. Em alguns momentos, sei o porquê do choro. Em outros, não consigo explicar e procuro o primeiro motivo que estiver à vista. Problemas que até duas semanas atrás eram apenas incômodos, nos últimos tempos têm sido dementadores. Racionalmente, tento explicar para mim mesma que para deixar de ver o escuro basta abrir os olhos. Não consigo. Pálpebras costuradas por uma linha invisível.

Hoje tomava um sorvete em um local aberto. O sorvete derretia sem parar, mais rápido que o normal. Minha língua nervosamente tentava conter as gotas de chocolate escorrendo pelos meus dedos, mas ainda que eu tentasse lamber por todos os lados, quando estava secando uma banda, a outra insistia em ser mais veloz. Olhei para o sorvete e pensei: sou eu. Enquanto derreto por um lado, tento secar o outro, mas a verdade é que estou inteira banhada de chocolate, com a casquinha amolecida e chocha, o guardanapo enxarcado e inutilizável, tentando conter o inevitável.

Já não tenho me esforçado para ouvir música e raramente acho que estou bonita. Poucos amigos me sobraram e não sinto vontade de procurar novos. Se a depressão fosse os estados da matéria, depois de derreter, o natural é que eu evapore de mim mesma. Virei então um zumbi que anda por todos os lados, cheio de culpa e remorso, sem lembrar da sensação da esperança preenchendo minimamente o coração.  

“Pra onde você está olhando? O que você está pensando?”. Para lugar nenhum, em nada. Olhando tão fixamente que a vista embaça e a cabeça faz eco. Tão silêncio que escuto o barulho da marcha das formigas. Tão solitária que não aguento mais minha própria voz. Tão engasgada que está pra faltar o ar. Espero que tão logo falte, de um jeito que eu evapore tão bem que nunca mais seja capaz de condensar novamente. Ainda não tive coragem de mudar a temperatura, mas torço bastante para que a meteorologia falhe e a onda de calor intenso chegue sem avisar, derretendo sorvetes e evaporando de vez o que não serve mais.

Daqui a pouco faço 27, existe uma expectativa nesse número quando se trata de fins de itinerários. Tomei três gotas em uma colher de chá, mas não adiantou tanto. De toda forma, é hora de tentar dormir.

(dia/mês/ano)

Vou continuar?

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Ótica

 


Depois de sair da oftalmologista, embora não tivesse tantas certezas quanto à receita, precisei investir em novos óculos. A tendência é que enxerguemos o mundo pelas lentes que estamos acostumados, sejam elas boas ou ruins para nossos olhos. Se estamos habituados ao par de lentes, acabamos nos sentindo mais ou menos confiantes para acelerar ou andar mais vagarosamente. Eu estava acostumada a correr, só que precisei acalmar o passo para enxergar melhor, mesmo com os óculos antigos.

Não vou dizer que foi fácil, mas devo confessar que a doutora estava certa e foi o mais adequado a se fazer. Dei alguns tropeços, na ânsia de correr, mas era preciso, antes de tudo, caminhar. Na minha cabeça, ouvia constantemente o “Tec, tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou?”. A bem da verdade, quem dita o ritmo a dois é o ajuste. Pensei que não daria certo, cheguei a desistir, mas resolvi apostar que o trajeto é melhor que a velocidade e eu queria, então, viver para ver aquela nova história. Com a receita em mãos, fomos à ótica.

Separamos diversas armações, arredondadas e pretas, para escolher a que ficasse melhor no rosto dele. Ele experimentava, eu opinava, ele ponderava e separava as classificadas. Se eu já admirava o quão bonito ele é, nesse dia admirei mais. Para isso, não preciso de suportes oculares, pois enxergo bem as obviedades. Assim como as armações de óculos, o amor tem que ser leve: não deve pesar no rosto, tampouco no coração.

A questão é que, para ter novos óculos, é preciso abandonar as lentes antigas. Reconheci os arranhões nas minhas e ele estava, afinal, escolhendo novos óculos. Para escrever novas histórias, é necessário olhar para a tela do computador vestindo o novo grau. Para não tropeçar, é imprescindível o ajuste – e, do lado de cá, acho que estamos começando a acertar o passo.

Quando se sente, deve ser fácil enxergar o outro pela manhã, deitado embrulhado, com a luz do sol entrando pelo balancim, após uma programação rotineira na quarta-feira à noite. Deve ser simples fumar um cigarro na praça, enquanto se questionam sobre os mistérios do futuro e as coincidências que os rodeiam. Deve ser gostoso como uma transa à meia-luz, ainda que silenciosa e discreta. Deve ser tão saboroso quanto um almoço inesperado, daqueles que acontecem pura e simplesmente pela fluidez da noite anterior e do dia seguinte.

É fácil sentir, difícil é enxergar. Aqui mora o otimismo: estamos trocando as lentes. De óculos redondos e pretos ou quadrados e rosas, o importante é ver um ao outro. E eu o vejo, admiro, provoco e espero. Ele, de outro lado, compreende também minhas passadas largas com as pernas curtas, segurando na minha mão e acreditando tanto quanto eu na tentativa de acertar o passo. Eu só quero que ele leia o texto que eu fiz pra dizer que o adoro cada vez mais, e que eu o quero sempre em paz. Porque estou pensando em você, agora e sempre mais.

Continuação do texto anterior.

(2/2)

sábado, 6 de agosto de 2022

Oftalmologista

 


Fui à oftalmologista, esperando finalmente ajustar minhas limitações oculares. Já imaginava que fosse míope, por só conseguir enxergar tão de perto, mas tão de perto, que seria incapaz de ler o letreiro do ônibus a poucos metros de distância. Ou a placa grudada na parede. Ou a paisagem da alvorada. Ou as letras não escritas no papel em branco. Nessa nova experiência visual, atribuí à miopia a dificuldade de enxergar o que, na realidade, não estava lá.

O diagnóstico foi certeiro: não há como ver o vácuo, ainda que exista a perspectiva de preenchê-lo. Tentei colorir o vazio com raspas de lápis de cor, mas continuei sem entender o que estava escrito no papel. Pedi ajuda para interpretar, abri meu coração e disse o quão incômoda estava sendo aquela miopia recém-descoberta, inusitada, precoce e inesperada. Eu, que costumava ter a vista de uma pilota de avião, estava com dificuldades para ver alguns palmos diante do meu nariz.

 Naquela conversa, ganhei um par de óculos, com as lentes de um grau menor do que meu déficit visual, mas que me ajudaram a enxergar. Um desenho lindo se fez imediatamente no papel, retratando uma avenida com via de mão dupla, separada por um canteiro cheio de imensas árvores. Com o desenho, histórias pairaram sobre a folha e logo pude perceber que o problema talvez não estivesse somente na minha visão, mas sim na falta dos óculos para enxergar aquele arranjo de poucas palavras e muitas cores. Junto com o desenho e as frases, um samba começou a entoar debaixo do sereno da noite bucólica daquela avenida. Depois da feira, virando na esquina azul, um pouco mais pra frente, à direita, estava a parada que me fazia sentir uma ventania interna e admirar o largo sorriso amarelado que coincidia com os charmosos pés de galinha. Ao estacionar o carro e engatar o freio de mão, os óculos repousados sobre meu nariz passavam a ser dispensáveis, sendo substituídos pelo baixo tom de voz por trás da máscara e pelos ajustes espontâneos com as mãos nos macios cabelos cacheados.

Os momentos que precediam o engatar do freio de mão costumavam ser de dúvidas e receios, enquanto os do retorno eram inebriados de bons sentimentos, boas músicas, descobertas, experiências e novas histórias. Todas as vezes em que eu estava dentro do desenho registrado no papel o resultado era uma agradável sinestesia. Ao me afastar dele, no entanto, a folha se descoloria até embranquecer completamente, de modo que nem os óculos eram capazes de me fazer enxergar o desenho que, até há pouco, ali estava. Precisei voltar à oftalmologista.

“Tec, tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou? Tec, tec. Troca de lentes.  Melhorou ou piorou? Tec, tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou?”

“Eu não sei, doutora. Parece-me que minha miopia é seletiva, restrita à arte registrada naquela página.”

“Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou. Acho que preciso pular novamente na folha para saber.”

“Não pule, se o desenho não está sempre lá, talvez ele não exista. Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou. Mas eu quero pular, sentir e apreciar toda aquela visão.”

“Se ela realmente existe, você conseguirá ver sem os óculos. Se a arte não te provoca, você não deve provocá-la. Pelo menos, não todas as vezes. Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou.”

Se há ou não algo escrito no papel, se é falha a comunicação... não posso saber. É como uma moldura de quadro grudada na parede sem a obra dentro, como um violão afinado sem que alguém saiba tocá-lo, como um jornal que não transmite notícias. As ferramentas estão lá, mas não cumprem efetivamente seu papel de comunicar. Deixar nas mãos de outro artista os pincéis para pintar um quadro que deveria ser feito em coautoria não é justo nem com a dupla de artistas, nem com o resultado. Inclusive porque se os pincéis estão nas mãos do que pouco pinta, talvez o quadro não chegue a ser finalizado. Nunca será exposto. Não causará emoções. Ficará adstrito à atmosfera abstrata do “e se...”, sem nunca ser concretizado, seja para se tornar disforme, seja para se tornar belo. Uma arte que não sai do pincel é um desperdício de tinta, porque ela seca no godê, ainda que se evite o vento, ainda que se queira deveras construir a obra e pendurá-la na parede.

“Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Melhorou. Um pouco.”

Presa às lembranças dos tempos breves de contato com a folha colorida, ponderei que talvez seja necessário trocar as lentes para ver melhor. A camisa vinho, as conversas, os cafés da manhã, o cuidado, a pele macia, o perfume escolhido conforme a ocasião, o largo sorriso que faz fechar os olhos, a enciclopédia musical e literária, o relógio de pulseira off white, a bermuda bege, a voz baixa e branda, o ajeitar dos cabelos cacheados, a pizza marguerita. Afastei um pouco da folha de papel, ele não estava lá – por falta de tempo ou por personalidade e, na dúvida, pela falta de envolvimento e reciprocidade. 

“Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou. Não sei se são essas novas lentes, mas a garganta fica inquieta se não consigo enxergar com clareza. Se não sei o que vejo, não posso apreciar. Se não aprecio, o único sentimento que gera é ansiedade. Tenho medo de dar novos passos se não consigo enxergar com clareza o que está bem em frente.”

“É preciso tomar distância, ainda que sejas míope. Talvez o teu problema não seja a miopia, mas sim para onde olhas e o que esperas ver. Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou.”

Porque não sei o que fazer. Sei para onde quero olhar, mas ele não me olha de volta. As tintas do godê podem secar e, como tenho o costume de muito falar, uma hora ou outra posso desistir do monólogo, em razão do silêncio que recebo de volta durante as tentativas de pinceladas. A arte comunica e, se não o faz, não o é. A arte expressa e, se não o faz, não o é tanto quanto. Estou de óculos e semicerrando os olhos, mas preciso enxergar para continuar a coautoria, sob pena de tropeços. Se não enxergo, sinto-me e sinto só. De óculos ou não, o sentimento é míope se não é compartilhado – e, nesse caso, não há como ajustar as lentes.

To be continued...

(1/2)