Fui à
oftalmologista, esperando finalmente ajustar minhas limitações oculares. Já
imaginava que fosse míope, por só conseguir enxergar tão de perto, mas tão de
perto, que seria incapaz de ler o letreiro do ônibus a poucos metros de
distância. Ou a placa grudada na parede. Ou a paisagem da alvorada. Ou as
letras não escritas no papel em branco. Nessa nova experiência visual, atribuí
à miopia a dificuldade de enxergar o que, na realidade, não estava lá.
O
diagnóstico foi certeiro: não há como ver o vácuo, ainda que exista a
perspectiva de preenchê-lo. Tentei colorir o vazio com raspas de lápis de cor,
mas continuei sem entender o que estava escrito no papel. Pedi ajuda para
interpretar, abri meu coração e disse o quão incômoda estava sendo aquela
miopia recém-descoberta, inusitada, precoce e inesperada. Eu, que costumava ter
a vista de uma pilota de avião, estava com dificuldades para ver alguns palmos
diante do meu nariz.
Naquela conversa, ganhei um par de óculos, com
as lentes de um grau menor do que meu déficit visual, mas que me ajudaram a
enxergar. Um desenho lindo se fez imediatamente no papel, retratando uma avenida
com via de mão dupla, separada por um canteiro cheio de imensas árvores. Com o
desenho, histórias pairaram sobre a folha e logo pude perceber que o problema
talvez não estivesse somente na minha visão, mas sim na falta dos óculos para
enxergar aquele arranjo de poucas palavras e muitas cores. Junto com o desenho
e as frases, um samba começou a entoar debaixo do sereno da noite bucólica
daquela avenida. Depois da feira, virando na esquina azul, um pouco mais pra
frente, à direita, estava a parada que me fazia sentir uma ventania interna e
admirar o largo sorriso amarelado que coincidia com os charmosos pés de
galinha. Ao estacionar o carro e engatar o freio de mão, os óculos repousados
sobre meu nariz passavam a ser dispensáveis, sendo substituídos pelo baixo tom
de voz por trás da máscara e pelos ajustes espontâneos com as mãos nos macios
cabelos cacheados.
Os
momentos que precediam o engatar do freio de mão costumavam ser de dúvidas e
receios, enquanto os do retorno eram inebriados de bons sentimentos, boas
músicas, descobertas, experiências e novas histórias. Todas as vezes em que eu
estava dentro do desenho registrado no papel o resultado era uma agradável sinestesia.
Ao me afastar dele, no entanto, a folha se descoloria até embranquecer
completamente, de modo que nem os óculos eram capazes de me fazer enxergar o
desenho que, até há pouco, ali estava. Precisei voltar à oftalmologista.
“Tec,
tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou? Tec, tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou? Tec, tec. Troca de lentes.
Melhorou ou piorou?”
“Eu não
sei, doutora. Parece-me que minha miopia é seletiva, restrita à arte registrada
naquela página.”
“Tec,
tec. Melhorou ou piorou?”
“Piorou. Acho
que preciso pular novamente na folha para saber.”
“Não
pule, se o desenho não está sempre lá, talvez ele não exista. Tec, tec. Melhorou
ou piorou?”
“Piorou. Mas
eu quero pular, sentir e apreciar toda aquela visão.”
“Se ela
realmente existe, você conseguirá ver sem os óculos. Se a arte não te provoca,
você não deve provocá-la. Pelo menos, não todas as vezes. Tec, tec. Melhorou ou
piorou?”
“Piorou.”
Se há ou
não algo escrito no papel, se é falha a comunicação... não posso saber. É como
uma moldura de quadro grudada na parede sem a obra dentro, como um violão
afinado sem que alguém saiba tocá-lo, como um jornal que não transmite
notícias. As ferramentas estão lá, mas não cumprem efetivamente seu papel de
comunicar. Deixar nas mãos de outro artista os pincéis para pintar um quadro
que deveria ser feito em coautoria não é justo nem com a dupla de artistas, nem
com o resultado. Inclusive porque se os pincéis estão nas mãos do que pouco
pinta, talvez o quadro não chegue a ser finalizado. Nunca será exposto. Não
causará emoções. Ficará adstrito à atmosfera abstrata do “e se...”, sem nunca
ser concretizado, seja para se tornar disforme, seja para se tornar belo. Uma
arte que não sai do pincel é um desperdício de tinta, porque ela seca no godê,
ainda que se evite o vento, ainda que se queira deveras construir a obra e
pendurá-la na parede.
“Tec,
tec. Melhorou ou piorou?”
“Melhorou.
Um pouco.”
Presa às
lembranças dos tempos breves de contato com a folha colorida, ponderei que
talvez seja necessário trocar as lentes para ver melhor. A camisa vinho, as
conversas, os cafés da manhã, o cuidado, a pele macia, o perfume escolhido
conforme a ocasião, o largo sorriso que faz fechar os olhos, a enciclopédia musical
e literária, o relógio de pulseira off white, a bermuda bege, a voz
baixa e branda, o ajeitar dos cabelos cacheados, a pizza marguerita. Afastei um
pouco da folha de papel, ele não estava lá – por falta de tempo ou por personalidade
e, na dúvida, pela falta de envolvimento e reciprocidade.
“Tec,
tec. Melhorou ou piorou?”
“Piorou.
Não sei se são essas novas lentes, mas a garganta fica inquieta se não consigo
enxergar com clareza. Se não sei o que vejo, não posso apreciar. Se não
aprecio, o único sentimento que gera é ansiedade. Tenho medo de dar novos
passos se não consigo enxergar com clareza o que está bem em frente.”
“É
preciso tomar distância, ainda que sejas míope. Talvez o teu problema não seja
a miopia, mas sim para onde olhas e o que esperas ver. Tec, tec. Melhorou ou
piorou?”
“Piorou.”
Porque não sei o que fazer. Sei para onde quero olhar, mas ele não me olha de volta. As tintas do godê podem secar e, como tenho o costume de muito falar, uma hora ou outra posso desistir do monólogo, em razão do silêncio que recebo de volta durante as tentativas de pinceladas. A arte comunica e, se não o faz, não o é. A arte expressa e, se não o faz, não o é tanto quanto. Estou de óculos e semicerrando os olhos, mas preciso enxergar para continuar a coautoria, sob pena de tropeços. Se não enxergo, sinto-me e sinto só. De óculos ou não, o sentimento é míope se não é compartilhado – e, nesse caso, não há como ajustar as lentes.
To be continued...
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