Se no
pentagrama é onde o compasso abriga cada nota, o parágrafo é o compasso da
palavra. Escolhendo o compasso, define-se o ritmo da melodia, os passos da
dança e a emoção das palavras que serão escritas. Com um pentagrama em branco,
sem compasso definido e sem ler há tempos partituras, resta apreciar Mozart
enquanto reparo bem nos detalhes amadeirados e barrocos ao fundo da igreja, ou
mesmo nas unhas roídas da cadeira ao lado. Como cheguei até ali? É o que vamos
descobrir.
Numa
segunda-feira qualquer de junho, bati o ponto no trabalho antes da hora e saí
correndo para o Theatro da Paz, na esperança de conseguir um dos cinquenta
ingressos para o concerto de jazz exclusivo que ocorreria naquele dia. Cheguei
na bilheteria e o avistei de longe, vestindo uma camisa social azul clara, com
as mangas dobradas em um visual despojado. Envergonhada, fui direto para o
final da fila fingindo que não o vi, apesar de admirar o sorriso e simpatizar
com sua inteligência desde o primeiro dia de aula na faculdade.
O
funcionário da bilheteria surgiu, de camisa preta e calça jeans, informando a
todos que os cinquenta ingressos tinham terminado. Ele olhou pra mim, riu
discretamente e disse: é, parece que ficamos para fora. Por dentro, agradeci
pela gentileza do cumprimento, pois eu estava tímida demais para ir até ele;
por fora, ri também e lamentei pelo azar de não chegarmos mais cedo.
Naquela
coincidência residiu o primeiro “e se?”. Um fim de tarde na minha esquina
favorita na cidade, o Bar do Parque funcionava lindamente (como sempre, desde
1904), o céu azul Paysandu denunciava que não choveria à noite. Ele perguntou o
que eu faria depois dali, falei que iria trabalhar e perguntei quais eram os
planos dele. Ele respondeu que deixou tudo organizado no escritório, para ficar
livre após o concerto. Demos de ombros e nos despedimos (apesar de, por dentro,
torcer fortemente para que ele me convidasse para tomar uma gelada no charmoso
Bar do Parque à nossa frente).
Por
mensagem, tomei coragem de comentar com ele que aconteceria um concerto no
sábado, na reabertura de uma casa tradicional da cidade. Ele respondeu que a
banda de jazz tocaria no Theatro na quinta-feira, e combinamos que ele me
avisaria o horário que fosse comprar o ingresso dele, para que eu conseguisse
comprar o meu também. Era uma programação individual dele, e minha, mas que, de
certa forma, poderia ser feita na companhia um do outro. Acabou que ele comprou
dois ingressos, e eu também... e assistimos ao concerto juntos. Terminamos a
noite conversando no Bar do Parque, ao som de música popular brasileira, mas
infelizmente sem Adriana Calcanhotto ou Marisa Monte, porque não deu tempo.
Na
semana seguinte, lá estávamos nós, assistindo ao concerto da orquestra
sinfônica em uma das muitas igrejas lindas de Belém, analisando a arquitetura
barroca do lugar, a trilha sonora de Mozart e as unhas terrivelmente roídas ao
meu lado. O tipo de programação que costumo fazer sozinha, mas que felizmente
estava acompanhada pelo simpático sorriso que costumava sentar na primeira
carteira da sala de aula.
Eu não
sabia que ele gostava de música clássica, tampouco que sabia tanto sobre Belém,
muito menos que nossos beijos se encaixariam como se tivessem sido escritos em
uma partitura. Existem muitos lados bons de conhecer pela segunda vez alguém,
um deles é descobrir se eu estava certa sobre as impressões que tive sobre ele
quando o conheci pela primeira vez. É como se o segundo ato do concerto fosse
absolutamente inesperado, mas igualmente agradável. Terminamos a noite
apreciando o rio e as embarcações iluminadas que por ele passaram, entre
cabelos embaraçados pelo vento e sorrisos charmosos, aproveitando o que nos
proporcionou a coincidência.
