domingo, 22 de agosto de 2021

Bohemia e poesia

Não costumo escrever coisas felizes, porque felicidade não é um estado de ser, e sim de estar. Acho que quem é feliz constantemente ou é desavisado, ou desatento, ou alienado. A gente fica feliz. Às vezes, em alguns momentos, eventualmente. Uns com mais frequência que outros, com mais facilidade e menos resistência. Estar feliz é abrir uma porta, não necessariamente para visitação, mas para que o mundo entre. O mundo e suas sensações. O calor da tarde, o céu azul, uma risada descontraída, um chopp bem gelado, uma conversa interessante. Quando tudo acontece de uma vez só, é um daqueles dias em que posso dizer que fui feliz.

Estar feliz passa tão depressa que nem sempre tenho tempo para processar e escrever sobre, até porque normalmente estou por aí pela vida experienciando todas essas coisas que chamam de felicidade. Ninguém escreve enquanto admira os fogos de artifício no céu, porque a gente só observa a pirotecnia, até que ela acabe. Inclusive, se avistares alguém com um notebook na praia durante um show de fogos, é bom desconfiar: ou é louco, ou é triste (eu sou os dois, então sei reconhecer os meus). Quando estou triste, por outro lado, ponho-me a pensar demais, chorar demais, apertar demais a garganta e o peito, até que a única forma de colocar pra fora é digitando um punhado de palavras que nem sempre fazem sentido para alguém além de mim. Por isso, boa parte dos meus textos é um amontoado de tristeza e solidão. Quando estou feliz, costumo sapatear pela vida. Quando não, apenas escuto o sapateado alheio e o eco do meu silêncio interior.

É verdade que minhas melhores prosas saem nos momentos de lamento. Talvez eu seja boa em ser triste. Inclusive, hoje vim aqui falar sobre a felicidade de um concerto musical e, de repente, cá estou proseando sobre pesar e solidão. Voltemos à alegria, que era meu objetivo, até porque ainda estou contente. Dei sorrisos escancarados, ri de boas piadas e assisti a um concerto lindo. Guardei o ingresso para lembrar que sou feliz quando estou só e que, sozinha, posso encontrar as pessoas por aí e desenrolar conversas que não desenrolaria se estivesse acompanhada. Se não estivesse só, diria um “oi, tudo bem?” e seguiria meu caminho. Sozinha, o cumprimento sempre pode ter continuação e, continuando, a gente conhece outras coisas, histórias, vivências. É bom conhecer.

Às vezes vou escrevendo tudo de uma vez, pra parecer que estou falando, porque se eu pensar muito começo a transparecer o meu pesar, mesmo quando não estou pesarosa (a gente acaba ficando nublado quando pensa demais e hoje quero o céu sem nuvens carregadas). Nesta prosa o eu lírico sou eu mesma. É curioso esse negócio de estar constantemente triste, a gente até desacostuma de viver momentos com nuances de felicidade. Hoje vivi. Vivi, sim. Por isso escrevo: pra lembrar. O ato de escrever é, pra mim, um registro de vida e de quem fui. Hoje fui feliz. A tarde estava linda, depois chuviscou e eu nem me aborreci. Estava feliz, em pé há três horas, com um chopp na mão, no meu bar favorito, em companhia agradável e aguardando a reabertura do Theatro da Paz.

O Theatro reabriu, lindo e iluminado. Tomei um café antes do concerto e parti para o paraíso. O que não é necessariamente bom, pois aqui pode significar que morri ou que fui para os piores lugares da plateia. Apesar de que, se eu morrer agora, duvido muito que eu vá para o paraíso celestial e cristão. Enfim, segunda opção: fiquei em uma posição péssima, olhando pra orquestra lá do alto e com o pescoço totalmente virado pro lado esquerdo. Não me aborreci. Estava feliz. Os três sinos tocaram, depois a música típica do início de espetáculo. Esperei demais por esse concerto. Fiquei emocionada em cada instante dele. Mergulhei nos compassos e vivi cada nota. A poesia hoje estava escrita em partituras e orquestrada.

Em um dado momento, o maestro pediu um minuto de silêncio para as vítimas do coronavírus. Um minuto de silêncio em um concerto é algo que toca lá no fundo da gente. Chorei. Depois a orquestra tocou uma homenagem aos profissionais da saúde, transmitindo fotos de pessoas recuperadas em um telão. Chorei de novo, mais profundamente. O sincretismo entre a tragédia e a arte, a morte e a salvação. Todos ali, sobrevoando em notas musicais. Pensei em quem não sobreviveu e não estava nas fotos no telão, também em quem sobreviveu e estava assistindo ao concerto. Tudo muito louco. A plateia inteira usando máscaras, o teatro finalmente reabriu. Chorei sem constrangimento. Estou chorando de novo, a propósito.

Depois, o maestro pegou o microfone novamente e registrou a desigualdade de gênero nas orquestras. Disse que, com o passar dos anos, passamos a ver mais mulheres nas orquestras, mas ainda são poucas na regência e, menos ainda, na composição musical. Por isso, na próxima temporada eles irão tocar sempre uma composição feminina, começando hoje, por Lua Branca, de Chiquinha Gonzaga. Por que chorei? Porque sou mulher, a pauta toca lá no fundo. E porque estava bem bonito. A gente tem que se permitir chorar pelas coisas bonitas também. Olhos marejados não dão conta de emoção profunda, às vezes é preciso se afogar em lágrimas pra lembrar porque é tão importante reabrir o Theatro, ouvir a música, admirar a orquestra... reabrir o coração para o reencontro com nós mesmos e com a vida.

O concerto acabou, fui embora tomar uma água de coco na praça. Depois voltei pra casa, sabendo que fui feliz. Serei novamente amanhã? Não sei, mas agora meus dedos estão com formigamento e preciso voltar ao trabalho. São três da manhã e já é segunda-feira. A gente não é contente se não terminar as tarefas, mas isso é assunto pra outro dia (provavelmente, nele estarei triste). O importante é que hoje fui feliz na esquina que emana bohemia e poesia, desde 1904. 

Texto escrito no verão amazônico de 2021.
Ainda estamos vivendo a pandemia da Covid-19.
O Theatro da Paz reabriu com um concerto
da Orquestra Sinfônica do TP, em 22/08/2021.
Todos na plateia usavam máscaras.
Este é um registro de que a sobrevivência
também precisa da arte.
Dia memorável.

sábado, 14 de agosto de 2021

Gillette

O amor é como sangue, escorre ardendo e deixando rastros. Quanto menos sangue, mais aberto é o vermelho. Do tomate ao bordô, contemplado por todos os esmaltes, mas nenhum deles consegue transmitir a beleza do vermelho descendo pela perna, em contraste com a minha pele alva e em sintonia com a minha dor. O joelho ardendo é um sinal de que estou viva, então paro pra contemplar esse minuto de dor, como as causadas pelo amor – e é por elas que escrevo. Pelo joelho doendo e pelo coração ardendo, e vice-versa. Pelas frases mal formuladas e pelos sussurros no pé do ouvido. Pelas vezes em que pedimos pra continuar e pelos momentos em que decidimos que era melhor parar. Pelas corridas e pelas caminhadas, metafóricas ou literais, sob a luz da lua ou sob o sol quente bucólico da ilha. Pelas madrugadas embaixo das folhas da praça, olhando um pro outro através da fumaça esparsa. O sangue escorre pelo joelho, meus dedos deslizam pelas palavras. Em ambas as situações, penso apenas no encarnado da dor e do amor.

Nenhum alquimista seria capaz de reproduzir a intensidade, beleza e sutileza do rubro que escorre e se mistura com as gotas de água do banho em andamento. Ele se desconcentra e vai ficando translúcido nas bordas do feixe que está sobre a pele, nem posso imaginar qual a nuance da cor que está sob ela. Queria mergulhar em vermelho de diversas formas, pois sou como um corpo em coma e pálido, com letras amarelas em uma imitação de veludo. Arde lembrar dos detalhes, assim como arde limpar esses cortes. Sou nada, mas nado na mais intensa cor, em busca de mascarar que, se dói, é porque se vive, mesmo fingindo essa overdose de morfina transmitida pela minha feição. Um paradoxo sentimental, resultado de escolhas feitas de forma consciente. Um adeus profundo em um abraço, iluminado pela lâmpada também vermelha, como a camisa fora da paleta de cores, que costuma seguir os tons terrosos.

Não posso nadar sob a pele pra descobrir todos os tons de vermelho, tampouco nadar na expectativa da história não escrita para desvendar qual seria o enredo completo. Por isso, flutuo nessa piscina encarnada, até o momento em que chegarei nas bordas e sairei dela. Se o amor é como o sangue, as histórias de amor também o são. Doem e ardem, até que se crie o cascão. Nem todas as histórias são livros, algumas são breves ensaios – e já são o bastante para alcançar o leitor. Por essas e outras, são mais do que se pode imaginar para a escritora. Agora, arde. Arderá durante um tempo. A ferida está aberta, ainda há resquícios do sangue que escorreu, mas há de nascer o cascão. Sem cuidar, sem limpar, só com o tempo. Depois do cascão, a cicatriz: para lembrar que bem ali aconteceu uma história. Com a lembrança, o sorriso da recordação. Voltemos ao banho, antes que acabe a água.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Concessionária

Quem quer comprar um carro zero quilômetro, vai à concessionária de veículos. Não há mistério quanto a isso. Para pagar, usa carta de crédito, compra à vista, parcelado... Não sei bem. Só sei que as pessoas olham, olham, olham. Perguntam, perguntam, perguntam. Após escolherem, pagam pelo carro e emplacamento. Dias depois, aparecem de novo e saem dirigindo o automóvel. Às vezes, decoram os carros com um laço imenso para os novos proprietários, o que eu, particularmente, acho bem cafona.

A concessionária tem carros para todos os gostos: desde os populares até os tops de linha, com motor de não sei quantos cavalos, teto solar, sistema de som integrado, botões no volante (acho chiquérrimo quando os carros têm botões no volante), quatro portas, vidros elétricos, diversas opções de cores. Comprar um carro é simples, desde que se tenha o dinheiro necessário. Ou seja, comprar um carro na concessionária significa que o adquirente já fez uma seleção prévia e busca um automóvel nunca antes utilizado, sem defeitos de fábrica, sem arranhões feitos pelos donos anteriores. Nada de seminovo. Nada de motor maquiado. Nada de correias antigas. Placa nova para estrear as multas, fragrância de carro novo sem ser daquelas que vendem nos postos de gasolina, pouco combustível no tanque para sair da loja. Os carros novos são, então, melhores. É lógico.

É exatamente por isso que não sei o porquê de eu estar aqui. Minhas lanternas estão quebradas ou queimadas, meus pneus estão carecas, estou sem estepe. Quando ligam meu motor, faço um barulho tremendo. Meu som não acende a luz, embora toque as músicas pelo bluetooth. Meu capô está queimado de sol, minhas portas estão arranhadas e gastas pelo tempo (a tinta preta não ajuda, qualquer grão de areia deixa meia dúzia de arranhões). Estou sem revisão há uns três anos e meu ar condicionado não resfria muito bem.

Ao lado dos carros zero quilômetro, sinto-me um calhambeque todo esculhambado. Não entendo o porquê de os curiosos insistirem em fazer test drive comigo. Eles aparecem, olham, olham, olham. Escolhem-me sem dizer o motivo e me colocam para rodar. Pela minha rua, pelo bairro, município afora. Estou seguindo itinerários nunca antes percorridos sem sequer saber o porquê de morar nessa concessionária, que claramente é incompatível com o que sou capaz de oferecer.

Sinto que a qualquer momento posso desmoronar. Não estou em condições de trilhar longos caminhos, levar as pessoas por inusitadas jornadas ou mesmo dividir a faixa de trânsito com os carros zero quilômetro. Não entendo o motivo de insistirem em me exibir junto aos carros de tinta brilhante e retrovisores bem pintados. Meu espelho está trincado, vejo meu passado de forma fragmentada e meu sensor de ré quebrou faz muito tempo. Não sei voltar atrás e quero ir adiante, embora eu ache que essas ruas bem asfaltadas não sejam o meu lugar, tampouco a concessionária é.

Meu sistema de som ainda funciona, ainda bem. Consigo captar os compradores pela poesia musicada, talvez. Toco boas melodias, embalo as viagens. Mesmo com o IPVA atrasado, colocam-me para rodar. Não entendo. Meu prazo se esgotou faz tempo, pedi prorrogação para o pagamento, qualquer dia serei pego em uma blitz e o motorista não poderá reclamar, pois sabia previamente. Aí vou para o curral, ficar ao lado dos meus: quebrados, desalinhados, com o imposto atrasado, com a tinta corroída pelo sol, vidros com a película gasta, sem teto solar. Mas insistem em me fazer morar naquela concessionária. Não vou dizer que não gosto. Eu gosto, só não entendo.

sábado, 3 de julho de 2021

Fosso

Entre o palco e a plateia, há o fosso. Apesar de não estar à vista de todos, muitas coisas acontecem por lá, começando pelo posicionamento da orquestra quando o palco é utilizado pelos bailarinos. Estes últimos, nas coxias, escondem o que não mostram no palco: as dores, bolhas, cansaço, figurinos pelo chão e sapatilhas velhas. Tudo o que não está no palco e na plateia passa imperceptível aos olhos dos admiradores.

É o idealizar do que é bonito às vezes, mas nem sempre. Dos instrumentos que entoam bonitas melodias, mas que também desafinam e quebram as cordas. Dos deslizes no linóleo e torcer dos tornozelos. Se tudo o que está no palco tem a pretensão de ser belo, o que está fora dele tem o único intuito de em algum momento ser exibido por lá, seja em som ou em coreografia. O que está no fosso e nas coxias não é ensaiado, especialmente quando o fosso está vazio.

As luzes se apagam e a música que anuncia o início de mais um espetáculo começa a tocar, criando uma sensação que só existe dentro do Theatro de detalhes áureos e teto cuidadosamente pincelado ao redor do lustre, registrando a herança da Belle Époque. As cortinas vermelhas começaram a se abrir lentamente, enquanto a cena já estava preparada em cima do palco. A plateia aguardava de olhos atentos a expressão da beleza em cima das sapatilhas, dos saltos flutuantes e giros impressionantes.

A plateia vai ao teatro para ver o que é bonito, mas pouco se importa com a dor por detrás das coxias, com o burburinho que faz a mente de cada um que contribui para o enredo ou com quantas vezes cada repertório precisou ser revivido para conquistar a sua atenção. O único objetivo dos pares de olhos sentados nas cadeiras enfileiradas do teatro é receber o que foi ensaiado para lhe ser entregue, num ato passivo de acreditar que é o centro da arte expressada enquanto os pipoqueiros sobrevivem do lado de fora da construção bela, porém elitista, que relembra um triste passado da exploração da borracha.

Nada na vida é belo. Nem mesmo o espetáculo. Nem mesmo o ballet, ou a música, ou a união entre eles. Nem mesmo o teatro que sedia a sede de expressar. Nada é belo. Tudo está fadado à reconstrução extremamente equívoca de que é possível ser feliz em uma vida totalmente miserável. Nada, absolutamente nada é belo. E é no vácuo que fica o fosso, no vazio que reside a saudade, no não que mora a vontade de gritar aos quatro cantos que tudo o que se vive é artificial, embora arrepiem os cabelos do braço e da nuca em prazeres momentâneos de admiração pelos dedos dos pés sobrecarregados – pela vida e pelo peso do corpo.

Tudo na vida é sobrecarregar algo em troca de outra coisa, sem saber exatamente o motivo. Se for pela pressa de viver, sobrecarrega-se o presente. Pelas angústias sobre o que não foi vivido, o passado. Pela incerteza do porvir, o futuro. Enquanto isso, a plateia acompanha um espetáculo non sense, conjecturando como se tudo fosse expressão de uma tal arte moderna. A bailarina não sabe o que é arte moderna, move-se apenas para resistir às suas desventuras. Enlouqueceu e está dançando sem música. Não há mistério, nem segredo. O infinito particular da bailarina é a vontade de pular no fosso como se dali fosse sair em pleno voo, rumo à sala secreta que ninguém conhece, onde moram seus próprios fantasmas e demônios.

O fosso não está vazio, pois nele estão sepultados todos os sonhos não vividos dessa vida que é uma lástima. A plateia espera, cheia de expectativas, novos saltos e giros, carregados de esplendor, enquanto ela finge que não é difícil lutar contra a gravidade de si mesma, contra os próprios ímpetos, contra a falta de vontade de pisar novamente naquele ou em qualquer outro palco.

As luzes se apagaram e a plateia continua atônita, impressionada com o conceito do espetáculo, com a performance da bailarina e tentando decifrar os dilemas e mistérios em cada passo dado ou contido. Quais serão as próximas cenas? Não existirão. A bailarina finalizou o improviso pulando no fosso, pois acreditava que tinha as asas de uma borboleta laranjada. As luzes do teatro se acenderam e chamaram a polícia e os paramédicos. Ela morreu instantaneamente, seu corpo estava estirado no fosso, ao lado do púlpito do maestro. A plateia continuou incrédula, pois é só o que faz: assiste ao espetáculo, mas foi incapaz de assistir a bailarina quando ela precisou. Uma salva de palmas à passividade e à morte derradeira, ao fosso e às coxias, ao espetáculo e ao que passa despercebido. Aplausos!


 

terça-feira, 8 de junho de 2021

Espasmo


A noite corria como todas as outras: sono parcelado e curto, leve e inconstante. Deitei na cama e, de cansaço, acabei adormecendo – mesmo que planejasse virar mais uma noite, como há muito tenho feito. No início, não por querer, mas por necessidade. Agora, transitando entre a necessidade e a incapacidade de adormecer: “with insomnia, nothing’s real. Everything’s far away. Everything’s a copy of a copy of a copy”, disse em 1999 a voz de Edward Norton.
Depois de passar o dia pensando em como queria que estivesse por aqui, para conversarmos, irmos aos meus novos lugares favoritos, tocar Alceu com o seu violão e a minha gaita, ouvir seus conselhos ou mesmo ficar em silêncio. Não pude deixar de me embalar ao som de Pink Floyd. How I wish, how I wish you were here... Porque, ano após ano, não consigo me acostumar com a sua ausência. Sintonizo a rádio esperando ouvir seu violão dedilhar a introdução dessa melodia (ou a de Caetano, que você costumava cantar para os caracóis dos meus cabelos). Meus ouvidos ainda lembram como é a sua voz e eu daria tudo o que tenho para ver mais uma vez seu dar de ombros dizendo que “é a vida”. Nós tínhamos os mesmos cacoetes, agora me sinto só com meus tiques e meu nervoso.
Everything’s a copy of a copy of a copy... Mais uma noite cheia de planos que não conseguiria cumprir, pois tenho tendência de ser megalomaníaca e fadada ao fracasso das horas. Deitei a cabeça no travesseiro para descansar os olhos e adormeci sem querer (e sem poder, dessa vez). Inesperadamente, meu subconsciente começou a sonhar – gostaria de não lembrar, mas parece que vim ao mundo para ser contrariada.
Foi tudo tão rápido, assim como naquele dia. Nós estávamos juntos e, de repente, entrei sozinha em um quarto, onde estava minha mãe e nossa família. Ela disse em tom fúnebre: seu pai morreu. Imediatamente, o quarto do sonho ficou todo preto e esfumaçado. Acordei gritando, maldito pesadelo. O desespero trancou minha garganta e levantei. 
Antes que pudesse raciocinar, com o coração disparado e quase saindo pela boca, percebi que você morreu mesmo: há pouco mais de dois anos e meio meu pesadelo é real. Revisito esse sonho sem querer, nas raras horas em que consigo adormecer. Ainda lembro da máquina em minha frente apontando a bradicardia no nosso último adeus. Com taquicardia, não supero que seu coração parou. Essa contração involuntária dói até o meu âmago, e sei que o espasmo nunca vai me deixar em paz. Eu tinha uma pessoa na vida e sei que nunca mais terei. Queria pedir sua opinião sobre essas palavras jogadas em pixels, mas também sei que nunca ouvirei. Odeio saber, mesmo que seja tão pouco diante de tudo o que você ainda tinha para me ensinar. The same old fears, wish you were here.


Ao meu pai, meu melhor amigo e fiel leitor,
que não lerá as palavras aqui escritas
(e todas as outras que hei de escrever).




terça-feira, 25 de maio de 2021

Aurora



Há muita poesia no céu
Durante os primeiros minutos da aurora
A pincelada, a passagem, a passarada
Sinestesia do enxergar e ouvir
O mudar de cor em um piscar de olhos, 
Cujos pares são incapazes de 
Capturar todas as nuances espontâneas
E impulsivas 
De quando ele nasce
Enquanto isso, 
Eles acordam e cantam vibrantes notas, 
Que ouvido absoluto algum 
Seria capaz de reproduzir 
Em qualquer que fosse o instrumento
A orquestra do amanhecer é inusitada: 
A pincelada, a passagem, a passarada


5h50min.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Para dizer o mínimo

Gil e Chico cantaram que é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar, mas o que seria a vida, senão a tentativa constante de preencher o espaço ocupado somente pelo ar? A vida é vazia, justamente por ser tão cheia. Sem tempo para apurar o sabor do líquido no copo, engolimos de uma vez as verdades de um suco cheio de caroços.

A agenda está cheia de ar e de encontros inúteis, conversas fúteis, em terrenos que seriam férteis se não estivessem sobrecarregados e sugados. Na ânsia de visitar o museu de grandes novidades, o futuro repete o passado, disse Cazuza. A questão é que, mesmo diante de todas as primeiras vezes, sinto saudade do líquido que preenchia o copo... que agora só tem ar.

Para disfarçar a dor e anestesiá-la, encho o copo de vinho. Queria dizer mais, mas tento verbalizar apenas o mínimo. Se escrever é expor as entranhas, fujo de mim mesma e me calo pra esconder de mim meus próprios calos, que não sei bem onde ficam. O copo está cheio de ar, por minha escolha: uma metade cheia, uma metade vazia; uma metade tristeza, uma metade alegria... é a tal da magia da verdade inteira, que não sei onde encontrar, porque estou fracionada em cada uma das minhas desassossegadas dispersões. Sou despida de vergonha de assumir o não saber, por isso caminho em silêncio, tentando afrouxar a garganta. Para dizer o mínimo, molho os pés na água cantarolando Cartola sob a afrontosa luz da lua minguante: deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar sorrir pra não chorar.



terça-feira, 11 de maio de 2021

Moinho

Era tarde de domingo e fazia sol, o céu azul mentia sobre o humor nublado. Na mesa, um livro pela metade, assim como o coração que batia dentro do seu tórax. De óculos escuros, escondia as olheiras e bebia um vinho rosê, afundado em gelo, tal como a sua própria companhia. Ao lado direito, o Theatro da Paz falava com ela, insinuando que os romances de repertório dançados no palco italiano são inversamente previsíveis em relação aos dançados na vida real. Quando não há música, não há dança... E bebia o rosê na companhia de Bibiana e Belonísia (dessa vez, ambas em silêncio), entre a bohemia e a poesia clássicas da solitude e do cenário.

O vestido lilás, de cor tão fria quanto o gelo do balde, como não esperava que estivesse seu peito naquele dia... A ânsia pela solidão a colocou na cadeira ao sudoeste de Ruy Barata, na companhia da Praça da República, cuja tarde do domingo azul não era tão aprazível quanto os olhos da Belle de Jour de Alceu. Submersa em cores frias, segurando a rolha da garrafa que representava sua ilha, sabendo que em pouco tempo não seria mais o que era naquele maio.

Cartola invadiu aquele período vespertino, deslizando em seus ouvidos e denunciando que o mundo é um moinho... Se em cada esquina cai um pouco de nossas vidas e em pouco tempo não seremos mais o que somos, quem somos nós? Se o mundo é um moinho e vai triturar meus sonhos, por que hei de ainda sonhar? A linha é tênue entre narrador e personagem, mas hoje não é dia para obedecer à risca a gramática da Língua Portuguesa.

Os Engenheiros do Hawaii também manifestaram a gravidade dos moinhos no psicológico dos otários, que são borboletas dentro do aquário, assim como ela, naquela tarde. Tudo bem, até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento... Mas nem o amor pelas causas perdidas impediu que ela visse o moinho como moinho, que é a vida, cujo abismo ela cavou com os próprios pés.

Quem seria Dom Quixote se não vivesse as fantasias dos romances de cavalaria? Ele precisou da magia para se ressignificar, ainda que apenas ele mesmo se enxergasse enquanto tal... Franzino e sonhador, também precisou enfrentar, à sua maneira, os moinhos – causando risos, é verdade, mas assumindo quem era para si.

A grande insanidade de Dom Quixote – seja no clássico de Cervantes, no ballet de repertório de trilha sonora composta por Ludwig Minkus, na música do Engenheiros ou em qualquer outra metáfora – talvez seja a salvação para os que fincaram os pés no chão por tempo indeterminado, até que o chão não os suportou mais e eles foram forçados a caminhar na areia movediça da incerteza. Como ela, com a taça de rosê e o livro na tarde do domingo azul.

Não há o que dizer, mas as lágrimas rolavam por baixo dos óculos escuros e deslizavam pelo vestido lilás, ao som de Cartola, que batia em seu rosto dizendo que de cada amor ela herdaria apenas o cinismo. Doía. Profundamente. Se o mundo é um moinho, ela precisa percorrê-lo, conhecê-lo, explorá-lo. Com suas próprias pernas e olhos, sentindo o cheiro da maré e o calor doloroso do sol: só. Se o mundo é um moinho, seu vento produz energia – e era o que ela precisava. Ainda é cedo, amor. Mas ainda é tempo, mesmo sem saber o rumo.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Perrengue quase chique

Era uma tarde comum na metrópole paraense e, como de costume, o céu começou a se pintar de cinza, com a sobreposição das nuvens carregadas, anunciando o que por aqui chamamos de toró. Estava na rua, em meu carro popular, dirigindo rumo a algum lugar que não lembro mais, assim como não lembrei que bastam cinco gotas de água para que Belém deixe de ser a Cidade das Mangueiras e se transforme na Veneza Paraense. Dito e feito: cheguei em uma rua que estava debaixo d’água.

Sem saída, engatei a primeira marcha e fomos, valentes, enfrentar o rio que se formou por cima do asfalto. O problema é que subestimei a profundidade, achando que meu Gol daria pé (ou rodas...). De repente, ele começou a gritar, fazendo um barulho que parecia que o motor estava pedindo socorro. Calma! Calma! Rapidamente, virei à esquerda e subi em um posto de gasolina que fica um pouco mais para cima do nível do mar (trocadilho inevitável).

Não demorou muito tempo para eu perceber que a água não desceria tão cedo e, ou eu teria que transformar meu carro em lancha, ou precisaria esperar a enchente baixar... Por isso, aceitei o meu destino, sentei no banco do motorista e resolvi aguardar.

O frentista, observador, bateu no vidro e avisou que a placa do carro tinha caído durante a batalha. Pobre Gol popular... agora estava banguela e afogado. Foi nesse momento que descobri uma ocupação que não conhecia ainda, muito comum na região das altas cheias da Veneza Amazônica: os caçadores de placa. Pois bem, vamos lá. Preciso explicar o que são, embora o nome já entregue um pouco a sua atividade. Caçadores de placa são os bravos homens que entram na maré urbana, dando braçadas para encontrar tesouros perdidos: as placas dos veículos banguelas.

Admirada com a coragem, contratei um caçador, afinal de contas, não sou o Michael Phelps, tampouco o Gabriel Medina. Claro que nada é de graça nessa vida: caso encontrada a placa, a recompensa seria um vintão para o caçador. Ótimo, justo. Sentei no banco do carro e resolvi aguardar, tentando enxergar de longe o reflexo prateado da placa com a ponta roída por um cachorro.

Duas horas se passaram, a água não baixou e a placa não foi encontrada. Estava calor, porque Belém é quente como o sol e eu estava com o ar condicionado desligado, afinal de contas, está quase sendo necessário fazer um empréstimo no banco para dar conta de pagar a gasolina.

O posto onde eu estava ilhada era na esquina do nada com lugar nenhum, então não tinha uma distração. A bateria do celular estava acabando, eu não tinha um livro no carro pra ler, sequer tinha uma conveniência pra comprar uma batatinha frita e um achocolatado. Espera, espera, espera. Tédio.

Tive uma ideia brilhante! Vi uma luz no meio do nublado da tarde: uma lotérica no posto de gasolina. Olhei minha carteira e percebi que tinha vinte e nove reais em dinheiro, sendo vinte para recuperar a placa e me sobrariam nove. Loteria não é gasto, é investimento – tentei justificar. O problema é investir no escuro, porque não se sabe o futuro, mas a gente mora no Brasil e precisa contar com a sorte de vez em quando.

Num ímpeto de esperteza, gastei toda a minha fortuna em jogos de loteria, com a expectativa futuramente comprar um carro-lancha, adaptável à realidade de Belém, já que Nilson Chaves estava certíssimo e os rios da minha aldeia são maiores que os de Fernando Pessoa. Usei os números da sorte do meu horóscopo e apostei, confiante.

Saindo da lotérica, o caçador gritou: “moça, achei a sua placa!”. Fui embora rindo, aguardando o resultado, que sairia às sete da noite. Consegui errar todos os números, meu horóscopo estava super equivocado. Foi aí que percebi que o meu prêmio do dia foi encontrar a placa do carro e ganhar uma história pra contar.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Mudança

Eu não aguento mais morar aqui. Poderia ter domicílio em outro lugar, mas este corpo não me comporta mais. Seja pelo comportamento subversivo e negligente que tive comigo e com meus limites durante todos esses anos, ou pela sucessão de caldos que tomei nesse mar revolto, ou mesmo por ser fraco demais para encarar a dureza que é esse viver. Não aguento mais morar nesse corpo. Se algum dia minha mente espúria viajou pelo espaço e sonhou com voos mais altos que os que dou, não consigo recordar. Da profundidade deste poço é quase impossível ver a luz, que parece do tamanho de uma estrela, mesmo sabendo que de perto é como se fosse um sol. Sei lá, nada tenho a ver com essas coisas de astronomia e a astrologia também não tem me ajudado, embora eu saiba que a troca de umas letras muda muita coisa entre essas áreas do conhecimento. Mas realmente não me importo. Estou descompromissado, desculpem-me os astrólogos e os astrônomos, ou até mesmo os astronautas. A questão é que eu não aguento mais morar aqui: nesse corpo. Talvez se eu tivesse descido ao mundo no corpo de outrem, fosse mais feliz. Ou se tivesse descido no meu corpo mesmo, mas soubesse dar a ele a vida que ele merece. A questão é que eu não sei. Sou grato pelos meus braços e pernas, boca, olhos e nariz. Ouvidos. Todas essas partes do corpo que a gente aprende na escola e com a mãe. Sou grato por tudo. Não quero ser ingrato. Mas é necessário desabafar: não adianta ter uma caixa de ferramentas ponta de linha se não sei usar. Pensei que fosse resolver o problema se mudasse de cidade, estado ou país, só que não há como me mudar de mim. E aí é que está. A casa está bagunçada, mas a casa sou eu e o morador também. Nos desenlaces dessa bagunça, sou incapaz de organizar minimamente o ambiente. Os eletrodomésticos estão todos com problemas. O coração bate rápido demais mesmo quando estou deitado, a cabeça fica acelerada até quando estou dormindo, meu bigode não para de crescer... não que isso seja um problema, em si, mas a casa fica meio suja. Estou com problema de fiação elétrica, porque não há mais luz em quase todos os compartimentos. A desorganização desse texto reflete a bagunça que está na casa. Nem chorar eu consigo, porque entope os canos. Voltando ao início: eu não me caibo mais. O problema é que não sei como resolver. Não tenho fiador para um novo aluguel. Já chamei assistência técnica, mas não está adiantando. Esse corpo não cabe mais minha morada. Pensei em ser nômade, mas pra isso precisaria virar espírito, e a gente vira espírito quando morre. Não sei. Não entendo de religiões também. (Coleção das coisas que não sei: astronomia, astrologia, religiões, y otras cositas más). Não tenho vergonha de dizer que não sei, mas parece que é pecado nesse mundo de sabidos que a gente vive. Opa. Esbarrei de novo nas religiões. Não há como escrever sem tropeçar em uma coisa ou noutra, e aí a gente volta para a bagunça que está esta casa. Se existisse um multiverso, quem eu seria se tivesse tomado outras decisões? Ainda caberia aqui neste corpo e nessa vida? Queria ser visitado por essa outra versão, pra pelo menos ele me dizer se daria certo em outra dimensão, ou se vim fadado à bagunça que é ser eu, com esse bigode horrível, que cresce sem disciplina ou lógica. A vida não tem lógica, as pessoas morrem do dia pra noite e aí simplesmente acabou. Ficam os outros sofrendo pela ausência, procurando justificativa, mas não há. Eu sinto saudades e medo. Saudades de quem perdi e medo de perder outros. Aí bagunça tudo, né? Tropeço na poeira toda dessa casa, mas é isso que dá não lavar a louça desde quando comecei a sujar. Percebi que a pia estava cheia, não procurei como lavar, agora ninguém consegue dar jeito, nem mesmo os especialistas em limpeza de pia, de cozinha, de casa, de tudo. Está uma bagunça. Insuportável. Há anos não tiro o lixo no dia da coleta. A culpa é toda minha, porque fui negligente, bagunceiro, sem noção. Agora estou aqui, procurando no catálogo pra onde me mudar, sabendo que não dá pra me mudar de mim. Essa casa com problema na fiação elétrica está me dando nos nervos, estou no escuro falando coisa com coisa para ninguém ler. Minha mão treme enquanto escuto o barulho do tec-tec-tec do notebook. Olho tão fixamente que meu olhar embaça. Falando em embaçado, hoje limpei o espelho, mas não adiantou: não adianta tentar me ver se já não me enxergo. Vou parando por aqui. Já falei demais. A questão toda é que essa casa não me cabe mais.

domingo, 21 de março de 2021

Dia Mundial da Poesia



De unhas roídas e coração apertado,
Tento reencontrar em versos meus avessos
Submersa em caos e dúvidas
Só consigo me descobrir
Nessa metalinguagem
Sempre fui de prosa, 
Mas hoje deixo uns versos
Refluxos do meu reflexo
Em sílabas
A minha tônica



Dia 21/03 é o Dia Mundial da Poesia.
Por isso, hoje, dei um tempo às crônicas.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Adagio

 

Toca o terceiro sino, a orquestra no fosso anuncia o início do segundo ato e a fumaça toma conta do palco. Vestidas de figurinos românticos brancos, as Willis aguardam nas coxias a abertura das cortinas e o início do ato. Chamado por Myrtha, o corpo de baile entra em cena e sincronamente se entrelaça entre pas de bourrees e arabesques. Em êxtase, o público aguarda o tão esperado pas-de-deux de Giselle e Albrecht, embalado pelo adagio de Adolphe Adam. 
Ela entra no palco, deslizando no linóleo e com os braços cruzados na altura da cintura. A música, tão lenta quanto as palavras dessas linhas, exige da primeira bailarina a resistência de lutar contra a gravidade. A sustentação da perna na altura da orelha requer a doação de uma vida de dedicação. Quanto mais devagar, maior a resistência. Quanto maior a resistência, maior a leveza. Assim segue o adagio: da barra ao centro da sala espelhada, dos ensaios ao espetáculo. Os tutus românticos brancos flutuam entre a arte e a força.
Se crescer é um adagio, a sustentação no centro sem o partner demora anos para acontecer, mas é necessário treinar diariamente. Mesmo que a música soe lentamente aos ouvidos da plateia e a coreografia exija todo o suor da bailarina, ela deve permanecer impassível, leve. A linha tênue entre a firmeza e o rarefeito mora nos músculos contraídos em cada movimento, mas também no semblante de quem está nas pontas dos pés.
A plateia quer performance e beleza, não importando os calos nos calcanhares e as dores no fim do dia. Se crescer é um adagio, o público compra o ingresso do espetáculo, mas não quer presenciar as quedas, pois ela não faz parte da noite de gala. Por isso todas as horas a fio na sala de espelhos, na escrivaninha entre os livros, à frente dos pixels do computador, dentro do labirinto de pensamentos situado no último andar dos camarins.
Subir nas pontas é doloroso, embora belo. Viver é dançar um adagio todos os dias nos bastidores para, quem sabe um dia, pisar no palco do teatro da esquina de casa, imaginando que é o Theatro Bolshoi. O collant está enxarcado há anos, a meia calça está surrada e o coque já se despenteou, mas há muito o que fazer. Há muita vida pra dançar e muitos repertórios para coreografar. Crescer requer resistência, aulas, ensaios, vontade, força e leveza. A plateia não pode descobrir quanta força faz a bailarina ao saltar um grand jeté, nem quantas noites passou em claro lendo livros para construir quinze páginas de pensamentos.
Ela nunca estará satisfeita com o ponché a cento e cinquenta graus no centro, porque ainda faltam trinta. O público admira, mas esperava pelos cento e oitenta graus. Crescer é a busca diária pelos cento e oitenta, mesmo quando o corpo não responde mais aos estímulos, as luzes das salas se apagaram e os mestres que a formaram foram embora. Ninguém sabe tudo o que ela fez para chegar aos cento e cinquenta graus, ela mesma não reconhece quantas vezes abriu mão de si pelo personagem que interpretaria no dia do espetáculo.
Se crescer é um adagio, ocorre lentamente. Para não parar de dançar, é preciso aprender que existem dias em que uma valsa vai cair melhor. Mais dançante e mais alegre, comove a plateia tanto quanto: o público quer o belo, a força transparece pela sutileza de um sorriso, que o adagio de Giselle – morta e sofrendo por amor – não permite. Se crescer é um adagio, é preciso reconhecer que tampouco importa para a plateia o que acontece nos bastidores, desde que o espetáculo inicie ao final do terceiro sino. A única verdade que mora no palco é a vontade da bailarina de continuar dançando. Por isso a música não para, nem a vida. Bravo! Bravo! Bravo! Ela se entenderá com os calos depois que voltar para as coxias.