segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Doblô vermelha


Perdidos estávamos perambulando em círculos pela floresta que não conhecíamos. Mal conhecíamos a nós mesmos, que dirá conhecer uns aos outros... Que dirá conhecer a floresta. Não havia mapa, GPS ou guia, apenas uns ou outros passantes que diziam "faça isso", "faça aquilo". Seguíamos as instruções, mas pode contar que satisfeitos não estávamos. Eram tantos passantes com instruções iguais, que chegamos a pensar que eles tinham combinado exatamente o que dizer quando nos avistassem. Era estranho, normas sem sentido, sem criatividade e, o pior: sem solução para os nossos problemas.
Depois de rodar, rodar e rodar em busca de uma saída para aquela floresta sem fauna e flora, sem sinal de vida, sem canto dos passarinhos ou colorido das flores, eis que passou uma doblô vermelha pela nossa frente. Curiosos, ficamos observando o carro rodopiar a floresta. Atípico! Uma doblô na floresta? E nós pensando que a mata era fechada o suficiente pra não passar carro, enganados estávamos, certamente, pois a doblô dançava no meio das árvores. Desviava de uma aqui, uma ali, mas conseguia se fazer notar em meio àquela floresta sem vida.
O carro parou, a motorista (descobrimos naquele momento que se tratava de uma motorista) abriu a porta direita e percebemos que os passageiros desembarcaram da doblô vermelha. O mais engraçado de tudo é que eles não se pareciam com os passantes que vimos anteriormente, os passageiros da doblô eram diferentes, tagarelavam de maneira diferente, andavam mais confiantes e pareciam acreditar em si mesmos, totalmente o oposto dos passantes, os quais, sem exceção, demonstraram insegurança ao falar, como se estivessem seguindo um manual que não existia. Observamos toda a movimentação atentamente. Os passageiros, já desembarcados e cheios de bagagem disseram adeus à motorista e seguiram seus caminhos.
Não mais que de repente, a doblô acelerou e parou logo à nossa frente. A motorista baixou os vidros e exibiu cabelos encaracolados enormes, um nariz um tanto quanto avantajado e olhos verdes em contraste com a pele morena. Nos convidou a entrar, mais persuasiva não poderia ser. Nem todos do grupo entraram, alguns optaram por continuar a caminhada em círculos, mesmo diante de toda a confiança que a mulher dos cabelos cacheados demonstrou. Não entendi, mas eu não tinha dúvidas quanto à minha decisão: embarquei na doblô prontamente.
A motorista abriu a porta do passageiro e me convidou a entrar. Sentei ao lado dela, sem medo, pronta para fazer qualquer coisa que ela pedisse. Ela perguntou pra onde estávamos indo, respondemos que não sabíamos. Começamos a conversar e a mulher facilmente pôs em cheque muitas das nossas concepções de vida e aspirações para o futuro.
Ao longo da viagem com a estranha mulher, gradativamente ela se tornou parte do grupo. Seus olhos verdes nos passaram confiança e nos deram coragem para jogar nossas palavras onde quiséssemos. A mulher nos ensinou tantas coisas ao longo de três meses dentro da doblô, achamos palavras para falar de tudo, menos para conseguir agradecê-la proporcionalmente por tudo o que ela nos proporcionou. A mulher de cachos nos ensinou que nem sempre vamos conseguir exatamente o que queremos, mas que cada um pode ser uma fagulha do fogo que queimará a floresta sem vida. Se ninguém se comprometer a ser fagulha, nunca haverá fogo.
Ao chegar a hora de se despedir, não sabíamos por onde começar. Depois de tanto aprender com aquela atípica e incrível mulher, faltavam maneiras de dizer adeus. Faltava, na verdade, a vontade de dizer adeus e a coragem de cortar o laço diário que se formou. Ela amarrou os cabelos num coque enorme e disse que era preciso, era uma fase da vida, era necessário sair da doblô e correr mundo afora, seja na floresta ou não. Nós, tão novos, abraçamos a mulher e desembarcamos. Eu, que me senti tão próxima por tanto tempo, apenas sorri e esperei que o meu olhar, francamente, transparecesse tudo o que eu tinha pra falar.
Descemos da doblô (com muito mais bagagem do que quando entramos) e vimos a mulher convidar novos jovens a embarcar. Nós, quando embarcamos, tão perdidos quanto os que agora embarcam. Agora os galhos da floresta não mais nos incomodam e os passantes não mais nos enganam, aprendemos a lidar com a falta de vida da floresta e, na ausência de flores, nós colorimos as folhas, desenhamos nos troncos de árvore ou, na pior das hipóteses, fingimos que as flores estão lá. A mulher nos ensinou que, independente do quão sem vida seja a floresta, isto não pode ser o suficiente pra suprimir a nossa capacidade de criar e imaginar. Acenamos, esperando encontrá-la em breve. Ela fechou a porta com os novos passageiros e partiu, pronta pra ensinar-lhes mais da mágica que é viver num mundo cinza.



Dedico este texto à minha professora Erica Vilhena que, durante os meus três anos de Ensino Médio, conseguiu me ensinar muito mais do que literatura.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Lápis de cor


Chegou de mansinho
Rabiscando de leve
À lápis grafite
Seu nome no meu coração
De repente pegou uma caixa 
De quarenta e oito cores
Azul, vermelho e verde limão
Coloriu cada cantinho da minha vida
Do meu sentimento
E da minha poesia
Colore todo dia sem cansar 
Desenhos diferentes a me encantar
Colore a minha imaginação
Com o verde água dos teus olhos encantadores
Não lembro mais como era ser eu sem nós
De nada me valem os outros amores
Toca na minha mão canhota e vamos pintar
Você do lado direito e eu do esquerdo
Você e eu desenhamos a nossa história
Nós dois em meio a essa euforia
Embriagados com tanta alegria
Na nossa história de amor a colorir
Obrigada por tudo
O que você me faz sentir

domingo, 23 de novembro de 2014

De malas e cuias


A linha tênue entre o limite e a explosão, entre o silêncio e os berros, entre a raiva e o desprezo. Aquele sentimento provocante que coça a língua e nos provoca a colocar todas as palavras não ditas para fora, mas um pingo (o último) de consciência, obriga a se manter na linha tênue supradita e engolir tudo. As palavras não ditas e o silêncio raivoso velado. Os pensamentos cacofônicos e a vontade de fugir pra longe. A perspectiva de que não há perspectiva e a esperança de, finalmente, ir embora.
Ir embora, embora haja gratidão pelos dias passados e pelos momentos pacientes, pelos sapos engolidos e pela paciência malhada ao longo dos segundos mútuos de fúria no olhar. Ir embora, embora muito tenha ensinado e aprendido sobre como deixar pra lá e como conviver calado. Ir embora, embora não haja perspectiva de melhora e, ademais, saiba que a tendência é somente piorar. Ir embora, embora as fotos antigas nos porta-retratos demonstrem sorriso e carinho. Ir embora, embora o amor exista, mas esteja soterrado por uma camada densa de lágrimas contidas e saturadas. Ir embora, embora tenhamos consciência da diferença exorbitante que há entre todos os presentes na árvore. Ir embora, embora se saiba que há pouco tempo pra aproveitarmos juntos aqui. 
De malas e cuias quase prontas, partimos rumo ao sonho inicial. Domiciliamos a gratidão em nosso peito e prometemos esquecer os momentos cinzas. Saturados uns dos outros, decidimos que é melhor viver e se gostar assim: de longe.

sábado, 15 de novembro de 2014

Fermento


Sem mais nem menos, tive que trocar o all star vermelho pelos sapatos de salto, a mochila verde pelas bolsas de couro, os mini vestidos pelas saias abaixo do joelho combinadas com camisa social e os coletes jeans com taxas pelos blazers. Troquei as noites vendo filme pelas noites conversando com os livros e os dias preguiçosos na cama por dias corridos dentro dos ônibus. De repente, tive que trocar o meu vocabulário e trocar a expressão de quem não sabe onde está pela expressão de quem sabe exatamente o que veio fazer (mesmo que não saiba muito bem). Tive que deixar de lado as indecisões e aprender a tomar atitudes, mesmo que, de início, bem atrapalhadas.
Tive que aprender a abdicar do que eu queria pra fazer algo que eu não queria. Desisti de insistir que a vida começava só após o meio dia e engoli a verdade comum ao mundo da classe média: acorde às seis. Aprendi que maquiagem não é só beleza, é, também, a máscara que esconde as noites mal dormidas e a preguiça de viver. Aprendi que nem todos os dias a gente tem saco pra fazer o que precisa, mas é preciso fazê-lo, porque a vida não espera que você tenha saco. 
Não adianta fingir que existe uma realidade paralela onde tudo é lindo e eu uso coturnos. Não existe. Não existe um mundo onde só tocam as bandas que eu gosto, infelizmente. Não existe sempre alguém pronto pra fazer o que eu deixei de fazer, eu preciso fazê-lo. Nem sempre as pessoas vão estar prontas pra justificativas, talvez eu também não esteja sempre pronta pra justificativas alheias. O trânsito não espera que eu acorde na hora certa pra poder engarrafar, ele engarrafa, eu estando lá ou não. 
Do nada, deixei de ver meus pais três vezes ao dia. Mal os vejo, agora. Deixei de almoçar em família e nem sempre lembro de tudo o que eu tinha pra contar. Encostei todas as minhas roupas pré-fermento e mal tenho oportunidade de usá-las. Larguei um pouco as gírias e engoli os pronomes de tratamento formais. Sou chamada de senhora todos os dias, mesmo sendo apenas senhorita. Tive que aprender a dizer exatamente o que eu quero e lutar por isso, ninguém mais pode fazê-lo por mim.
Disseram que eu tinha que sair das asas dos meus pais e aprender a voar. Todos os dias eu me jogo de algum galho, às vezes, consigo planar, outras, caio no chão. Minhas asas fracas e inexperientes ainda não estão aptas para alçar voo, mas todos os dias eu tento, um dia eu consigo. Será que isso é aquilo que todo mundo fala, como é mesmo o nome... crescer? Sei lá. Opa, talvez.

domingo, 14 de setembro de 2014

Mercúrio


Eu sou Mercúrio tentando ficar o mais próximo possível do Sol. Não ligo pra quantos planetas existam depois de mim, o que é realmente significante é que entre nós não há planeta algum. Busco o lugar mais próximo para realizar a menor rota e girar incansavelmente ao teu redor. Eu sei que bilhões e bilhões de coisas acontecem simultaneamente alhures a nós, mas não importa, continuo girando e girando e fazendo os meus anos mais curtos, pois é de total satisfação pra mim apenas sentir o teu calor mais intensamente por toda a minha superfície, influenciando a minha atmosfera. No fim das contas, o que realmente importa não é a quantidade de coisas que realizam rotas elípticas ao nosso redor, mas sim que eu sou a primeira a desfrutar do calor e da luz intensos que tu emanas. E, por mais que existam mais sóis por aí, nesta ou em qualquer outra galáxia, o que importa é que tu és o meu. Porque não me interessam as outras trilhões de estrelas se eu posso ter um sol. Tu és o Sol do meu Sistema Solar.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Três por quatro


Com meus pés de valsa sigo nessa contagem até três sem perder o ritmo e sem cansar. Meu coração quando te vê leva suas batidas de mínimas a semicolcheias. É no compasso deste amor descompassado que nossos momentos tornam-se semibreves. Queria eu ter ligaduras para te juntar a mim a fim de que nossos sons pudessem ser tocados em uma arcada só. Vou de dó a dó sem pestanejar quando resolvo escalar teu coração pra mim. Entre sustenidos e bemóis fico imaginando o momento em que ficarmos sós. Não canso de solfejar em diferentes escalas o quão harmonioso é tua voz aveludada tocando meus ouvidos. Nosso amor é como música, por isso, espero que a orquestra sinfônica continue essa valsa a tocar para eu continuar dançando contigo: um, dois, três; um, dois, três; um, dois, três... 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Queda livre


Eu estava à beira do penhasco, na dúvida se pulava ou não. Olhava para o lado oposto ao precipício e via o chão firme, a paisagem concretamente estática e a minha independência com relação a qualquer outro objeto. Porém, o eco do abismo gritava o meu nome. Relutante, eu olhava para baixo e sentia uma atração indescritível. O mistério em meio à neblina do desconhecido versus o chão firme de coisas passageiramente imutáveis.
Olhei para baixo, para trás, para baixo, para trás, para baixo... Tropecei e caí penhasco abaixo.
Primeiramente, a gravidade me empurrou com sua aceleração constante de dez metros por segundo, enquanto meu coração disparava inúmeras vezes e meus olhos foram tomados por uma cegueira branca de um alvo só.
Neguei pra mim mesma que estava caindo. Fingi que ainda pisava em solo. Tentei mostrar para mim e pra o resto do mundo que eu continuava firme, com os pés presos ao chão e imune aos precipícios.
Porém, esse precipício era alto demais e tentador demais. A queda renegada não durou muito e logo assumi que se tratava de uma perdição: a queda livre.
Agora, não consigo parar de sentir essa queda. Sinto o vento correr pela minha epiderme, meus cabelos se digladiarem sem rumo e um frio gelar a espinha. Sinto o impacto da minha vontade insaciável de cair e os batimentos acelerados do meu coração contra o meu peito. Ao mesmo tempo, fico inebriada de deslumbramento ao observar a paisagem verde que me cerca, em contraste com o centro negro do abismo cujo fim desconheço.
Caio sem medo, guarida pela sensação de que é uma queda boa e de que, no fundo do desconhecido, há uma piscina de mashmallows em que cairei para neutralizar o impacto.
Caio sem pensar e sem tentar me segurar. Fecho os olhos, abro os braços, relaxo os músculos e minhas mãos encontram outro par de mãos. Percebi que caio acompanhada de outrem. Nos abraçamos e vamos cair juntos, então. Destemidos, assim é melhor.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Pupilas


Ela saiu do ônibus aos tropeções, correndo para a aula para a qual já estava atrasada e tentando se equilibrar no salto alto que deslizava de seus pés. Agoniada com o calor e a correria, o avistou com os olhos semicerrados tentando enxergar os dizeres dos ônibus que passavam. Como o de costume, ela precisava tirar uma brincadeira com ele. Andou apressadamente e esbarrou de forma impactante em seu ombro direito. Os dois riram e se cumprimentaram, ele pegou seu número de telefone (que, mesmo se conhecendo há um tempo, não o tinha) e ela voltou para o mundo real e para o relógio que a apressava sem piedade. De noite, inusitadamente, ele lhe manda mensagem e, a partir de então, eles se aproximaram e começaram a conversar frequentemente. Depois de um tempo e de muitas manhãs de estudo diletante, eles passaram a fazer parte da vida um do outro. Trocavam mensagens, conversavam sobre o dia-a-dia, se ajudavam no que era possível. 
Mais um dia comum de afazeres cotidianos os aguardava, mais um dia de cansaço e semana de provas, mas eles não sabiam o que o dia os reservava. Em uma praça da cidade, debaixo do sol do quase meio-dia e um calor insuportável, ela olhou para ele e não resistiu às suas pupilas contraídas e seus olhos verdes (e míopes) sob o sol: a troca de olhares e o silêncio ensurdecedor a obrigaram a tascar-lhe um beijo inesperado. Ele riu. Ela olhou para o chão, envergonhada, mas, segura de si, continuou o que havia começado. 
Assim se inicia a história de Leonardo e Marina: a dupla de estudos.
Os dias se passaram e eles continuaram fazendo parte da mesma rotina, cada vez mais infiltrados na vida um do outro. Dias depois, ao chegar na faculdade, ela o avistou com aquela camisa verde de botão, sentado à sua espera. Há muito tempo ela o viu usando a mesma camisa e admirou deveras o quão garboso ele ficou com ela. Fez o mesmo neste dia. Marina ficou impressionada com a sincronia da camisa verde (e sua queda por camisas de botão) com os olhos míopes de Leo. O charme era encantador.
Eles se encontraram e foram ao cinema. A maneira como agiam era estranha para Marina, desacostumada com a ideia de entregar seus sentimentos à um outro alguém, descompromissada com o afeto além das histórias dos livros e dos blogs que lia.Ele, por sua vez, revelava-se cada vez mais envolvente. Rapidamente, os dois pisaram na areia movediça que são os sentimentos. 
Depois do filme, sentados no sofá do shopping, ela o mandava ir embora, dizia que ele precisava voltar a estudar. Preso pelas correntes da procrastinação, ele adiava a partida a cada minuto. Ele a abraçava e ela (mesmo querendo o contrário) dizia que ele realmente precisava ir. Eles estavam com os rostos bem próximos, ele a encarava com seus olhos míopes e suas mãos no pescoço dela, quando disse:
- Você é tão linda de perto, que é de onde eu consigo te ver direito.
Marina olhou para seus pés e riu, realmente não esperava um elogio naquele momento.
Com os olhos fixos e distantes, os olhos verdes de Leo e suas pupilas dilatadas (e enormes [e hipnotizantes]) fizeram com que Marina ficasse encafifada:
- O que se passa por essa cabeça, hein? - perguntou ela, curiosa e descontraída. Ele disse:
- Provas, notas, Marina, Marina, Marina...
Nesse momento, virou o rosto para perto do dela e completou:
- Acho que estou me apaixonando.
Ela ficou estarrecida, pelo visto, ele adorava surpreendê-la com palavras inesperadas. Marina ficou sem reação, mas, quando voltou à realidade, de súbito, ela o beijou e eles engrenaram em beijos sucessivos. Por meio deles, ela esperava dizer: "é, acho que sim".





segunda-feira, 9 de junho de 2014

Espelho


De um jeito bizarro, depois de menos de três segundos e meio estávamos um ao lado do outro conversando e dividindo os fones de ouvido. Depois de quatro minutos, falávamos sobre nossos gostos em comum. Depois de uma hora, imaginávamos como o mundo seria mágico se ele fosse como queríamos que fosse e voássemos em vassouras de um lado para o outro. Depois de um dia, trocávamos confissões e desabafos. A conversa fluía, tudo muito, muito rapidamente. 
Entrou na minha vida sem tocar a campainha e logo se jogou no sofá, atirou os tênis no canto da sala e colocou os pés em cima da mesa de centro. Ligou o som e colocou a música que bem quis e, coincidentemente, era o que eu costumava ouvir. Começou a folhear meus livros e notou uma congruência de gostos. Largou os livros de lado e fez cara feia quando viu morangos na geladeira, sorri e disse: não são meus, odeio morangos. Ele falou alto o quanto odiava morangos e repetiu mil vezes. Gargalhamos, era inexequível tanta coincidência.
Decidi investigar um pouco mais, adentrei em um universo alheio de dragões e aquários. O mais esquisito é que o universo de outrem era exatamente igual ao meu. Nós conversávamos sobre nossos conflitos internos e, incrivelmente, eles eram os mesmos. Completávamos as frases um do outro e achávamos chocante o indício do nascimento de uma amizade num contexto fantástico: o da fantasia concreta.
Desde então, olho no espelho e sou capaz de ver o reflexo do amigo que a vida me deu e não hei de deixar ir embora. Entro em meus pensamentos e sei que há alguém com pensamentos iguais aos meus. Quando estou próxima do precipício, corro em busca dos meus braços, ou melhor, seus abraços simbólicos. Quando o vejo começar a falar, ouço a minha voz e as palavras que iriam sair da minha boca naquele momento. 
Uma conexão sem igual se estabeleceu. Percebi que, querendo ou não, estávamos destinados a tropeçar um no outro. Somos a mesma pessoa em corpos diferentes. A mesma alma dividida em duas partes. Somos horcruxes um do outro.
Encontrei alguém pra sentar no banco de passageiro da minha nave espacial, fomos à Tókio através das linhas de telefone. Choramos e rimos. Gritamos e sussurramos. Explodimos em risadas e enterramos segredos. Voamos em dragões e fizemos feitiços nas nuvens. Corremos por cima da água e chacoalhamos os cabelos pra fora da janela do carro. Sempre estamos bem longe mesmo estando no mesmo lugar. Viajamos pra todas as dimensões sem sair da nossa. Seguro em sua mão e vou, sem medo de cair.

sábado, 7 de junho de 2014

As Desventuras de Pedro: Na Ousadia


Episódio 3

Deveras desapontado com a perda de um ente tão querido, Pedro saiu de casa atordoado e resolveu ir ao encontro da moça com quem estava saindo. Foi buscá-la em casa e, vendo o rapaz naquele estado, ela pediu para guiar seu carro. (POW!) Antes mesmo de sair da vaga onde o carro estava estacionado ela bateu com o para-choque na calçada. Merda. Pior do que estava não podia ficar. Desesperada, a menina resolveu beijar-lhe os lábios para acalentar o coração partido pela perda de Buddy (in memorian) e, agora, como forma de pedir perdão pelo carro amassado. Passou para o banco do carona quando (CRASH!) ouviu-se o estalo: eram os óculos de Pedro se partindo. Ao mudar de lugar sem sair do carro, a moça pisou nos óculos e os quebrou. Pelo visto, tinha como piorar sim. O dia estava resumido em uma dose cavalar de azar.
Pra tentar levantar o astral, Pedro deixou a moça em casa e resolveu ir à uma festa com alguns conhecidos. Festas são alegres, cheias de pessoas alegres, o álcool te deixa alegre... Não tem como dar errado! Ideia brilhante.
Pedro finalmente chegou na festa, encontrou os amigos, bebeu umas... Tudo dando certo. Porém apesar de cultivar uma relação amistosa com as pessoas, um de seus amigos bebeu além da conta e se meteu em uma briga, chamou para si a atenção da festa. Pedro estava por perto à espreita, longe dele querer se envolver em conflitos, afinal de contas, pela primeira vez no dia a merda que acontecia não era diretamente relacionada a ele.
No auge da pancadaria, os seguranças correram para segurar o amigo de Pedro. O brigão começou a socar o ar, a fim de se defender. Soco para cima, soco para baixo, soco para a direita, soco para a esquerda, soco na diagonal, soco no olho de Pedro. Isso, no olho.
Os amigos do azarado foram convocados a ir para uma viatura, pois estavam causando alvoroço. Apesar de tentar se manter longe de problemas, estes não suportaram a distância e foram ao encontro do ilustríssimo Senhor Pedro. Foram todos para o carro de polícia. Por sorte (se é que é possível utilizar tal termo nesse momento), depois de um rolê na viatura, todos voltaram para a festa.
Cansado, de olho roxo, abatido e desmotivado, o objetivo de Pedro passou a ser uma volta pra casa tranquila em seu carro (sem parabrisas), entrar em seu quarto (sem o Buddy), deitar em sua cama e adormecer, na esperança de que tudo não passasse de um pesadelo.
No caminho para casa, passando por uma ruela escura, o rapaz foi encurralado por subversivos da lei. O ladrão colocou o revólver na janela do carro e tentou iniciar um assalto. Porém, a coragem subiu à garganta e Pedro acelerou o carro com todas as forças. O ladrão atirou, mas errou e não acertou o pneu.
Pedro, ainda em choque, continuou o seu trajeto. O magrelo estranho chegou em seu prédio às cinco da matina, não levou o pão para justificar o horário impróprio e fugir das perguntas de seu pai. Resolveu subir pelas escadas. Tudo estava escuro, mas mesmo assim arriscou. Subiu os degraus vagarosamente, até que tropeçou e caiu. Para evitar uma queda pior, seu reflexo o obrigou a colocar as mãos no chão. Apoiou todo o seu peso em cima de seu pulso problemático, além do impacto inesperado no mesmo. Ah, não! De olho roxo e pulso podre, Pedro subiu as escadas suplicando por socorro (ou por um pouco menos de azar).
Chegou em casa, seu pai, fulo da vida, olhou para o menino de cima abaixo e não entendeu porque diabos ele tinha chegado naquele estado.
O pai trocou o pijama pelos jeans e juntos eles foram para o hospital, a fim de cuidar do pulso (e, se possível, um banho de sal grosso cairia muito bem). Pedro ficou no hospital e, bem na porta, um buquê de trevos de quatro folhas foi colocado. Plantinhas de pimenta por todos os cantos do quarto e pés de coelho (não os do Buddy) foram pendurados na cabeceira da cama. Prevenção nunca é demais nesse caso. Tudo isso a fim de proteger os visitantes desse mau auspício, vai que a praga pega em alguém, não é mesmo?

FIM

segunda-feira, 12 de maio de 2014

As Desventuras de Pedro: Querido Buddy



Episódio 2

Pedro resolveu ignorar os contratempos anteriores. Chegou em casa, tomou um banho de álcool e logo foi em busca do amor de sua vida: seu coelho de estimação, Buddy. Tudo fica melhor quando damos amor e recebemos igualmente em troca. Um bichinho de estimação é capaz de proporcionar experiências de afeto recíproco e verdadeiro. Tendo em vista tudo isso, Pedro só queria acariciar os pelos macios de Buddy. Saiu pela casa em busca do coelho. Procurou embaixo dos móveis, embaixo da cama, atrás das portas... Em todos os lugares possíveis, até que resolveu buscar respostas com dois outros moradores da casa: seus irmãos, gêmeos e parceiros de crime.
- João, Rogério, vocês viram o Buddy por aí? – perguntou Pedro.
João prontamente respondeu:
- Claro que sim, ele está em casa, estava com calor e...
- ... nós o colocamos no freezer para se refrescar! – concluiu Rogério, feliz por ter ajudado.
Depois de uma longa pausa acarretada pelo choque que a frase proferida causou em Pedro, a reação imediata foi ir até o freezer ver se realmente o coelho estava se refrescando em um compartimento com “ar condicionado” e compatível com seu tamanho, porém, a temperatura ambiente demasiadamente baixa. Praticamente uma sala de estar refrigerada.
Pedro abriu lentamente a porta do congelador, na esperança de que tudo fosse apenas uma brincadeira de mau gosto dos irmãos mais novos, tudo o que ele desejava era que os irmãos quisessem apenas pregar-lhe uma peça. Porém, para a infelicidade dele, Buddy estava lá. Ainda tinha os pelos macios de sempre, as patinhas felpudas e o focinho peludo, mas, ao que tudo indicava, o coelho havia se refrescado um tanto além do que devia. Buddy estava congelado, não movia um bigode. Era um picolé de coelho.
Instantaneamente, Pedro juntou as mãos e como um imã elas foram ao encontro do pescoço de João. A imobilidade de Buddy era demais para o frágil coração do dono que o amava. O pobre coelho virou defunto, assim como Pedro virou órfão de bicho de estimação.

domingo, 11 de maio de 2014

As Desventuras de Pedro: De Dentro do Bueiro



Episódio 1

Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana (sem folga nos feriados), todos os dias do mês (incluindo os vigésimos nonos dos fevereiros bissextos), Pedro carrega no bolso uma pitadinha de azar. Não há mistagogia que explique o quiproquó que dimana da vida de Pedro, só pode ser sortilégio (ou coisa pior). As histórias de azar de Pedro são improváveis, quiçá impossíveis, coisas que nos fazem assumir a postura de Tomé: “só acredito vendo”.
Preconizo o pobre garoto e convido os caros leitores a inquirir quais os motivos que levam um ser tão inóquo a ter uma gama deveras diversificada de histórias inebriadas de azar.
Depois de um dia cansativo, nosso queridíssimo protagonista finalmente saiu da aula. O dia nublado transformou-se em chuva torrencial e o horário obrigava Pedro a ir embora e tomar um pouco de chuva. A rua alagada implorou que Pedro metesse o pé na água, a fim de alcançar seu carro. Colocou o pé esquerdo e subitamente, sem aviso prévio, deslizou para dentro do bueiro. A chuva gargalhava da cara de Pedro, as pessoas na rua, idem. Dentro do bueiro até a cintura, cheio de água, lama e sabe-se lá mais o quê, Pedro viu-se sem reação.
Nenhuma boa alma prestava socorro ao pobre, até que o reparador de carros, certamente tocado com tamanha falta de sorte, resolveu largar seu guarda-chuva e tentar ajudar o rapaz que carregava, além dos óculos embaçados e molhados, uma nuvem de azar nas costas.
Dentro do carro, encharcado, sujo e com um cheiro pútrido, Pedro resolveu acionar os parabrisas, afinal de contas, chovia (bastante, inclusive). Os parabrisas haviam sumido, escafederam-se. Foi então que a verdade veio à tona: tinham sido roubados. Era absolutamente exequível afirmar que aquele não era o dia de sorte do menino Pedro.
Tudo bem, talvez em alhures a maré mudasse, quem sabe? Talvez fosse a chuva o motivo de tanto mau agouro. Talvez ele não devesse levar em consideração o acontecido em uma perspectiva axial, afinal de contas, celeumas acontecem, não é mesmo?

sábado, 3 de maio de 2014



Ainda sinto meu nariz percorrer o seu pescoço e inspirar de leve o aroma do seu sabonete. Sinto o seu cheiro macio percorrer as batidas aceleradas do meu coração, nessa sinestesia maluca que chamam de amor. Vez ou outra, ouço sua voz aveludada falando meu nome bem baixinho ao pé do meu ouvido. Às vezes, apesar de tentar evitar, abro a gaveta e fico observando a sua camisa que ficou comigo. Remexendo minhas coisas, de vez em quando encontro uns rabiscos que trocamos. Ainda posso escutar a sua risada, digna de quando eu falava coisas sem sentido que só você ria. Em alguns dias, posso até sentir seu abraço e encostar minha cabeça no seu peito. Às vezes, até tento lembrar a sua altura comparando com as pessoas que passam na rua. Algumas madrugadas abrigam os meus risos contidos, causados pela lembrança das nossas piadas internas. 
Por mais que eu tente fugir, por mais que eu tente evitar, por mais que eu tente esconder: você ainda está aqui, comigo. 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Verde iridescente



O sol acordou e cintilava. O astro rei do Sistema Solar emanava luz, calor e novidade. Desde o sábado, eu imaginava aqueles lábios rosa queimado e esperava pelo momento de experimentá-los. Tomei os cadernos pelo braço e fui para a parada de ônibus ao som de Here Comes The Sun.
Coloquei os pés na faculdade e caminhei rumo à minha sala, tudo como em qualquer outro dia prosaico. Foi então que meu celular apitou e, como quem foge de uma aranha caranguejeira, sorrateira e discretamente, fugi da aula para vê-lo pela segunda vez.
Caminhamos um ao encontro do outro e nossos rostos dimanavam sonolência. Chegamos à beira do rio e, finalmente, seus lábios cor de uva encontraram o caminho até os meus.
Sentamos na beira, as árvores dançavam ao nosso redor, o vento era o maestro da sinfonia daquela terça-feira. Seus dedos enroscavam em meus cabelos enquanto minhas mãos agarravam-lhe a nuca. Na faculdade não poderíamos estar, estávamos alhures, dois estranhos conhecidos.
Pausas curtas nos permitiam olhos nos olhos, seu verde estava sincronizado com o verde das plantas, da grama, do rio e da minha camisa. Tudo fazia parte de um estranho conjunto mistagógico. Ele levantava o queixo e me olhava por cima, de modo que sua pálpebra ficava meio aberta. Juntamente, levantava as sobrancelhas de um jeito espontâneo e engraçado, enquanto o vento atrapalhava a minha apreciação jogando meus curtos fios de cabelo sobre meus olhos.
Não havia necessidade de trilha sonora, o bater das folhas tomou para si essa função. O sol tornava hipnótica a miscelânea de contrastes. Depois de muitos sorrisos largos e olhares por cima do queixo, nos despedimos e guardei no bolso uma história que merecia ser escrita.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Voando com tequila


Como quem bebe pouco e resolve tirar uma noite de porre, é o meu ingresso à vida adulta. Resolvi passar direto do refrigerante para a tequila e cá estou, bamba. Totalmente sem noção, tento me equilibrar no salto alto, dou uns belos tropeções e, algumas vezes, levo uns tombos bonitos pra quem observa de fora. É dura a vida de uma pessoa "zero etílico" quando esta resolve pular todas as fases e ir direto para o open bar
Entrei na vida adulta como quem é obrigado a cumprir horas complementares acumuladas no final do curso universitário. Cheguei com o bonde andando e fui obrigada a sentar na janelinha. Ingressei na maioridade sem ao menos receber um kit calouro ou um plano de ensino. Aqui estou eu, como todas as peças do equipamento chamado "gente grande" jogadas no chão, enlouquecida em busca de um manual de instruções. 
Seja o ingresso à vida adulta tardio ou precoce, é sempre árduo aprender a andar com as próprias pernas. Ninguém lhe segura pelo braço e lhe faz andar de um lado ao outro da sala. Não tem andador, não existe muleta. Vire-se, como dizem por aí: tartaruga você não é. 
Como todo passarinho que tenta alçar os primeiros voos, as quedas são inevitáveis. As asas, ainda fracas pela falta de prática, buscam forças internas para se sustentar. Hora do passarinho sair do ninho e de trás das asas dos pais. É tempo de praticar mais a malícia do mundo adulto. Chegou o momento de trocar as penas e crescer de verdade. Por hora, apenas uma palavra é capaz de descrever essa transição: socorro.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Overdose



As histórias de amor são tão distintamente iguais. Há algo de especial em cada uma delas, mas todas parecem ser parte de um pout-pourri maluco de comédias românticas, salvo uma diferença: os finais. Nos filmes, depois de muita luta e chororô, ouve-se uma música feliz e estimulante e o mocinho beija a donzela. O filme termina, as luzes acendem, todos seguem suas vidas achando que um dia poderão viver uma comédia romântica. Não, não poderão. O amor reserva sempre um final: o (in)feliz. Esse sentimento é um bicho doido, mas doido mesmo, daqueles que morrem porque perderam a noção na hora de dosar.
Tudo começa com uns goles de destilado aqui e ali. Presa encontrada, olhares cruzados, palavras trocadas. Além das palavras, trocam telefone, facebook, seguem no instagram. Depois de algumas conversas no whatsapp, os mais suscetíveis ao poder do álcool vão perdendo o equilíbrio lentamente, caindo na tentação de amolecer o coração. Os reflexos comprometidos fazem com que o cidadão perca a noção do perigo. Vai se entregando, sem pensar no porvir. 
Até que, lá pela meia-noite, surge um bolo. Um bolo meio misturado, acompanhado de marijuana. Como sempre, tudo começa com aquela famosíssima sensação de bem-estar e euforia, típica dos estágios iniciais dos relacionamentos. O tempo passa mais vagarosamente, assim como quatro beijos podem parecer ser vinte. Novamente, perde-se o equilíbrio. Alucinações de palavras não ditas e sentimentos euforicamente novos causam o constante apetite voraz pela outra pessoa, gostinho de quero-mais, sensação também conhecida como larica. 
Em seguida, o sextasy causa, além dos efeitos colaterais do ecstasy, a fissura física. Não há a necessidade de entrar em detalhes, já que, logo depois, a coca sente-se no dever de causar o aumento da pressão arterial, taquicardia, e uma fissura viril.
Tudo seria muito bom e muito bonito se continuasse nesse rumo. Mas não, o bicho amor não deixa por menos, ele gosta de "surpreender".  O relacionamento começa a desandar, lá se vai uma dose de LSD. Alucinações (que de doces não têm nada) são responsáveis por brigas e brigas, que acarretam a perda de apetite. Noites mal dormidas levam à sonolência do sujeito, burro, que se meteu nessa roubada (eu avisei). 
O relacionamento perde o gosto e termina. Separadamente, resolvem retornar para o velho álcool. Às vezes vivenciam um ou outro flashback. Sentem saudades. Ambos querem se livrar da saudade, esta puta que cobra barato, mas no fim do programa assalta a sua carteira e te deixa na cama dormindo. Esticam o braço, miram na veia e compartilham a seringa, injetam doses cavalares de heroína. A overdose faz com que um seja companheiro do outro (no necrotério). Ah! Eu bem que disse: o amor é uma droga. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Sublimação


Era um belo casal, 
Se amavam, coisa e tal
Se beijavam na sala, na cama e no quintal,
Quando juntos estavam, nada ficava mal

Era um belo casal,
Andavam de mãos dadas
Tinham quentes madrugadas
Fugiam pras escadas
Todas queriam daquele jeito ser amadas

Era um belo casal,
Às vezes algumas briguinhas
Sempre as mesmas ladainhas
De quando em quando umas birrinhas

Eram um belo casal,
Até que foram se desencontrando
Mesmo se amando
Chegou um tempo que não estavam mais se aguentando
O estoque de amor estava se esgotando

Eram um belo casal,
Nas fotos, nos vídeos e na lembrança
Esse romance todo fez uma baita lambança
Com os dois corações de criança

Eram um belo casal,
A rima morreu
O amor idem
O sentimento sólido evaporou
Ficou só a saudade
Já que eles eram um belo casal,
Eram

Espelho plano



Queria ser perigosamente misteriosa, indecifrável, opaca. Queria ser um mapa do tesouro dentro de um labirinto místico, onde o tesouro seria meus sentimentos guardados numa caixa e, ironicamente, o labirinto nunca deixaria ninguém alcançá-la. 
Queria, sim, ser difícil de entender, porque essa vida de transparência não tem a menor graça. Queria estar sempre na contramão do que é previsto. Queria dar um baita trabalho pra qualquer cartomante. Queria ser boa com blefes, saber flertar, saber fingir, ou fingir sem saber que aquilo tudo era mera atuação de uma mente confusa. 
Queria surpreender, saber chegar sem avisar, sem hora marcada, sem antes ter combinado, e, mesmo assim, ser recebida por vivas. Queria que meu olhar fosse um imã. Queria ser irresistivelmente misteriosa, a ponto de nem eu mesma conseguir decifrar minhas emoções. 
Queria despertar a necessidade de conhecimento apenas pelo sorriso. Queria falar por enigmas e responder perguntas com outras perguntas. Queria ser um prato bem temperado, apimentado. Queria ser um banquete de comidas exóticas, sabores novos e frutas afrodisíacas, ao contrário, eu não passo de arroz branco: sem graça, sem cor e só fica bom se estiver acompanhado por algo melhor. 
A verdade é que sou tão clara, mas tão clara, que chego a ser translúcida. Sou como água: inodora, insípida e incolor mas, diferentemente da água, não sou essencial. A emoção da surpresa está em falta. Sou tão previsível que a curiosidade fica entediada. Todos ficam entediados (até eu). Gostaria muitíssimo de não ser a personificação do tédio. Sou tão transparente que até um completo desconhecido saberia meu próximo passo. Minha personalidade carece de uma coisa: sal. 

sábado, 4 de janeiro de 2014

Laranja


Percorri seu pescoço com graciosos beijos em câmera lenta, mordiscadas na orelha fizeram-me subir um pouco mais, seu brinco de pena de pavão esvoaçava e batia levemente em meu rosto, até eu desviar para o lado e nossos lábios se conectarem. Seus cabelos voavam e faziam uma dança louca nos ares, chicoteavam em nossas bochechas e emaranhavam-se em meus dedos. Vez ou outra, abria os olhos de relance para espiá-la, tão linda à luz do luar. 
Minhas mãos realizavam curvas perigosas em alta velocidade. A mudança de solo era constante, mas não havia tempo para parar e tirar a tração, seguíamos naquele rally inusitado: algodão, pele, algodão, pele... Seu corpo com planaltos e depressões tornava tudo muito mais interessante.
Nossas pequenas pausas nos faziam observar o quão lindo estava o céu, as estrelas nos observavam atentamente. Cada movimento era motivo pra aplausos, já que estávamos sob a luz dos holofotes da galáxia. A trilha sonora era a água salgada batendo na areia úmida. 
O vai e vem das ondas era como...
Pele sobre pele por cima da toalha, as estrelas despediam-se, tristes por ter que ir embora antes do fim do espetáculo. O céu ganhava um tom de azul claro, carregando um leve alaranjado. Laranja suave, da cor de seus cabelos. A luz fraca do amanhecer fez-me ver suas sardas, seus olhos castanhos e o quão espetacularmente linda estava exibindo aquelas olheiras de uma noite não dormida. 
Acordei e conferi o celular ao lado da toalha, esperando por uma ligação a noite inteira. Nenhuma ligação perdida. Sob a luz do alaranjado percebi que foi bom sonhar.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Vazio


Você saiu e deixou a porta aberta, o vento frio entrou e gelou a espinha. Pés descalços, saí debaixo das cobertas pra tentar tampar o buraco deixado por você. Não consegui. Na verdade, às vezes consigo, o vento resolve dar uma trégua, até encontrar uma fresta nova por onde entrar.
Você saiu e deixou os porta-retratos na estante, deixou o resto da sua comida preferida na geladeira e sua toalha, ainda úmida, em cima da cama. Você saiu e deixou sua música predileta tocando, deixou meu caderno de rascunhos aberto na página dos versos que fiz pra você, deixou nosso dialeto morrer por desuso. Você saiu e deixou a bagunça por minha conta, achou que eu fosse capaz de fazer a faxina.
O tempo passa e o apartamento continua fedendo à lembranças de um quase futuro perfeito, dos nossos quase beijos de reencontro e dos nossos quase planos concretizados. O vento, vez ou outra, entra pela janela e minha nova obsessão é livrar-me dele, mesmo que pra isso eu precise morrer com o sufoco dos nossos sonhos frustrados. 
Os cacos dos pratos quebrados ainda estão pelo chão, quando você liga, esqueço de mencioná-los. Tudo continua no seu antigo lugar, mas, agora, sem seu devido significado. É tudo vazio, carregado pela falência múltipla de órgãos de um amor que já estava desenganado. Fui só, ao velório e ao funeral. Enterrei-o na cova mais profunda, joguei flores por cima e parti, esperando jamais vê-lo novamente. Porém, vez por outra seu fantasma surpreende-me com uma visita, normalmente é pra anunciar que mudou de nome: Amor já não é mais, é Saudade. É o vazio que sufoca por transbordar. É o oco, tão oco que dá eco.