sábado, 31 de dezembro de 2022

O último e o primeiro

Sou bem relutante a qualquer misticismo, confesso. Apesar disso, também tento agarrar minhas esperanças em previsões de horóscopo ou tarot, que de alguma forma sirvam como consolo pelas desventuras vividas no presente, na esperança de que o futuro trará algum tipo de recompensa por todas as vezes em que precisei cavar resiliência num poço que já estava fundo o suficiente pra me afogar. Dois mil e vinte e dois foi uma mistura louca e esquisita de êxito e fracasso, realizações e frustrações, tudo ao mesmo tempo, no mesmo drink.

Totalmente sóbria, nos últimos dias do ano, apenas sob efeito do meu ansiolítico, resolvi testar uma experiência diferente: a reclusão. Gosto de ser só e isso não é novidade, o que vinte e dois me ensinou foi a aproveitar minha presença, mesmo quando eu sou uma companhia desagradável. Quem melhor do que eu pra saber lidar com aquela convidada que chegou fora de hora e entrou de sapatos sujos no meu quarto, deixando-me grudada na cama durante dias? Foi então que precisei me olhar no espelho e aceitar, também, a minha versão com olhos inchados de tanto dormir a contragosto, e entender que, apesar de intragável, ela também sou eu. Saber conviver com ela e o que fazer pra ela ir embora é o meu maior desafio, e foi o maior de todos em vinte e dois. Mergulhei nas profundezas do meu coração, da minha escrita, dos meus limites e das minhas incertezas. O autoconhecimento dói. Dói muito.

Não consegui embarcar nos festejos de fim de ano, nem nas confraternizações familiares, tampouco em rituais (tenho medo, confesso, porque da última vez o feitiço virou contra a feiticeira e incorporei um pára-raio de desgraça). Faltando umas tantas pra meia noite, saí pela casa soprando canela, como dizem que tem que ser feito. Preciso ser próspera para pagar dívidas e já tinha a mistura aqui. No pior dos casos, se a simpatia não der certo, ao menos minha mão está cheirando a rabanada.

Sentei na minha mesa dos pensamentos, com o planner novo em branco, sem metas estabelecidas pra me frustrar e sem reflexões pra me alfinetar. Decidi passar a virada sozinha, ao som do ar condicionado, bebendo água e escrevendo.

É o que faço da vida. Escrevo. Por gosto, mas também por necessidade. Pra desfazer esse nó na garganta que não sai nem na terapia. Pra encarar todas as minhas versões, inventadas ou reais. Pra contar mentiras palatáveis pra quem gosta de romance. Pra verbalizar meu grito mudo. Hoje, com a versão nua e crua encarnada, escrevo que faltam dois minutos pra acabar dois mil e vinte e dois.

Sigo por aqui, sem enredo, olhando às vezes para a minha cachorra que tem medo de fogos, para me certificar que está tudo bem. Está. Eu também estou. Digerindo de formas confusas minhas tantas culpas pelo que fui e por quem sou, escrevendo agora que falta um.

Não sei quantos segundos, exatamente, neste instante.

Pisquei algumas vezes, porque o glitter já caiu pelos olhos enquanto lacrimejo por baixo dos óculos agateados.

Meia noite.

Dois mil e vinte e três: mudou o calendário do computador. Eu não sei, mesmo, o que esperar. Sequer sei se espero algo. Não sei se pela depressão ou pelos calos, vejo o Ano Novo só como um novo calendário, mas a vida é a mesma e nós, lamentavelmente, também. A mudança que espero vem de dentro, mas também de rumos, cujas rédeas já tomei, mas ainda não cheguei. Minha bússola está tremelicando, algum problema com o ímã. Deve ser porque a terra é plana. Não! A partir de hoje, primeiro de janeiro de dois mil e vinte e três, ela voltou a ser redonda. Ainda bem, muitos anos de ensino médio e fundamental iriam pelo ralo com tanta lorota, imagine só meu mestrado em direitos humanos... O dia vai nascer feliz lá em Brasília. Essa foi uma das benesses de dois mil e vinte e dois.

Meia noite e três. As pessoas devem estar se abraçando, fazendo brindes de champagne barato e atraindo boas energias para o novo ano que nasce. A essa altura, já deve ter nascido também o primeiro bebê de dois mil e vinte e três em uma maternidade qualquer do Brasil. Espero mesmo que as boas energias venham, e que o dia nasça feliz pra todos, porque ainda estamos sob efeito da morfina que foi a pandemia. Os ouvidos ainda estão zumbindo depois de tudo isso e de todos que perdemos. Estamos reaprendendo a viver.

Deixei em vinte e dois o cachorro da minha vida, minha melhor amiga Leia. Vai doer muito escrever o in memoriam nos agradecimentos do meu livro, que deve sair agora no primeiro semestre. Ela me arrancou sorrisos quando nem eu mesma achava que era possível.

Entrei em vinte e três com o pé esquerdo. Porque sou canhota, sou gauche, e teremos um novo governo vermelho. Meia noite e seis. Escrevo só o que vem. De repente, o texto deixou de ser sobre a depressão e passou a ser sobre esperança. Acabo de descobrir que ainda há isso por aqui, na espontaneidade das palavras que fluem sem controle nas pontas dos meus dedos. Este é o primeiro escrito de dois mil e vinte e três, e o último de vinte e dois. Teria um pout-pourri de músicas clichês pra citar, mas a mpb já fez isso por mim, então me poupou um trabalhão. Que bom que não morri ano passado, espero agora sentir de novo vontade de viver. Isso é sobre depressão, mas também é sobre esperança, que expressei no glitter azul e rosa dos meus olhos e na minha saia de gaivotas. É libertador ser eu mesma, em todas as minhas cores, sem poda de asas. Fernão Capelo transcendeu antes de ensinar, após ficar muito insatisfeito com tudo o que vivia e ousar fazer novas manobras. Em vinte e três quero voar. Meia noite e treze.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Camisa azul celeste

 

Acordei cambaleando de sono, porque demorei a apagar a luminária na noite anterior. A roupa do dia – quase nunca separada com antecedência, mas já mentalizada minimamente – estava escondida pelo quarto e, certamente, ainda amarrotada do pós-lavagem na máquina de lavar velha e enguiçada, que mais parece uma escola de samba fora do ritmo. Separei com pressa a saia midi e saí a procurar a camisa azul celeste de alfaiataria, que, apesar do calor que faz às margens da Linha do Equador, transmite a seriedade que preciso para uma segunda-feira de audiência no Fórum Cível.

Às três porradas (pelo cansaço e pela pressa), montei a tábua de passar roupa e misturei um tanto de água no fim de amaciante que restava no borrifador. Peguei a camisa, estendi sobre a tábua e liguei o ferro de passar na tomada. Nada muito emocionante, tudo com a normalidade de uma segunda-feira que chegou após um final de semana sentada à frente do computador. Mais um dia da fase adulta, menos um dia de vida. Mais um dia na corda bamba de semear sonhos e colher burn out.

Comecei passando as costas da camisa, até ficarem bem esticadas, porque odeio roupa amarrotada. Logo escuto a voz de mãe que dizia antigamente: “andas toda amarrotada por aí, o que vão pensar da tua mãe?”. Muitas camadas de problematizações sobre a frase e o patriarcado, mas restou a mensagem de uma mãe cuidadosa que me ensinou a sair de casa alinhada.

Terminei as costas, encaixei o ombro da camisa no semicírculo da tábua e passei o lado direito, depois o lado esquerdo. Sacudi levemente a roupa, para analisar o andamento da tarefa feita toscamente, e percebi que estava muito pior do que eu imaginava: ao tentar arrumar um lado, o outro inevitavelmente amarrotou, as costas da camisa voltaram quase à estaca zero, as mangas permaneciam enrugadas e a gola estava semelhante a uma pintura em craquelê.

Olhei para o relógio na tela do celular, a hora já havia avançado e eu não conseguiria mais tomar café, mas era uma questão de honra sair de casa com a camisa bem passada. Respirei fundo, chamei cinco palavrões mentalmente, coloquei o espresso para preparar na máquina de café e voltei à tábua. Nesse estica e puxa, percebi que é difícil demais manter a camisa inteira lisa, assim como todas as mangas da vida alinhadas.

A gente perde o sono e deixa de comer direito pra arrumar de um lado, aí o corpo grita e te põe doente. A doença atrasa o andamento das obrigações, mas é preciso descansar. Se a gente descansa, vem a mosca da culpa atrás da orelha sussurrar: você está fodido, o tempo está correndo, olha só em quantos prazos fatais você vai tropeçar se não passar logo a manga dessa camisa. Aí manda mensagem pra psiquiatra, claro, porque o remédio está acabando, e marca a sessão de terapia da semana que vem. Só que nessa coisa toda acabei de perceber que já faz dois meses que não corro na praça, então estou sem exercícios físicos, e engordei, e piorou a rinite e o ronco, e não tenho sono de qualidade, até porque há muito não durmo direito. Nem fiz a cirurgia do desvio de septo, mas também não me importo. De madrugada, ao invés de cumprir tarefas, escrevo crônica. A porra da camisa lá: toda amarrotada. Só porque hoje, justamente hoje, resolvi que queria usar alfaiataria pra parecer séria e respeitável.

Não há quem passe a minha roupa, assim como não há quem viva a minha vida. Sou obrigada, todos os dias, a tentar alinhar os emaranhados do tecido. E como vão os affairs? Sei lá, cara. Se foram para algum lugar, eu não soube o paradeiro. Também não quero saber. O único itinerário que me interessa é aquele cujo destino sou eu mesma.

Deslizei o ferro pelo lado esquerdo da camisa, chegando até a ponta da manga. Passei de novo, de novo, de novo, até ficar ótimo. Quando analisei, voilà: o lado direito estava todo escroto de novo. Respira fundo, agradece pelo dia bom que vem pela frente e mentaliza que você vai passar o dia todo sorrindo e sendo espirituosa, engraçada, gentil e com pensamento rápido. Um deslize de frase lacônica já se desdobra em suposições. Será que são os hormônios? É aquele período lá do mês? São tantos questionamentos importantes sobre o humor de uma mulher! Energia lá em cima, cacete.

Meu café já até esfriou a essa altura, porque começou aquela dorzinha de gastrite por tomar café de barriga vazia. Esqueci também de beber água. Acabei de lembrar que não respondi aquela mensagem da semana passada, tampouco atualizei minha amiga sobre o último date que tive, também não me posicionei nas redes sociais sobre a pauta importante do dia que está todo mundo falando e eu não faço ideia do que seja. Tudo passou tão rápido, que o mês já acabou e eu nem li aquele livro sobre finanças que prometi que leria ano passado, nem bebi dois goles de poesia no feriado, dormi no meio do episódio da nova série que está bombando (e não saberei comentar, porque não sei do que se trata). Acabei não dando o ar da minha graça pelos botecos da metrópole e, com os poucos que falei, fiquei cansada só de pensar.

Eu só queria um Cheddar McMelt e escutar música pop sem precisar unir uma sílaba na outra, mas fui tão atropelada pelo mês quanto a camisa azul pelo ferro de passar. Como a camisa azul celeste, toda vez que tento arrumar um lado da minha vida, o outro amarrota. Talvez eu não saiba passar roupa, ou talvez simplesmente viver seja tão confuso quanto se manter alinhado o dia todo. Até porque, no fim do dia, a camisa já sujou, o delineado já escorreu, o carisma evaporou... e eu ainda estou aqui, sentada na beira da cama e olhando para a tábua de passar roupa, com a camisa azul amassada e mais uma segunda-feira de sobrevivência pela frente. Amarrotada ou não, hei de encará-la.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Then it's a date

Se a vida fosse um grande banquete chique, os episódios seriam feitos de improviso pelo chef e colocados naqueles pratos com tampa prateada, que os grã-finos chamam de cloche. Para quem se senta à mesa, sem saber pelo que esperar, pode vir um combinado de arroz à piamontese e filé, o melhor corte de sushi, pastel de pato ou um pote de sorvete com feijão congelado dentro. Resta saber, portanto, se o paladar do degustador estará a postos para o inesperado, como quem vai à Dedos de Mel e resolve experimentar feijõezinhos de todos os sabores (foi mais ou menos assim que descobri que compartilhávamos a mesma sala comunal em Hogwarts).

De comum acordo, decidimos visitar um lugar novo na cidade, cuja decoração era composta por alguns dos nossos itens favoritos: livros. As paredes verde-bandeira, agraciadas pelas prateleiras amarelas, receberam um toque especial dos livros de sebo encapados de vermelho com letra dourada, em uma belíssima mensagem subliminar que sussurra: ainda há chance de ser gauche.

Falando em gauche... logo após descobrirmos que a nossa casa em Hogwarts é a mesma, apertamos dois sorrisos e nos encaramos breve e timidamente. Para quebrar o gelo (ou evitar a ebulição instantânea), ele perguntou quais eram minhas tatuagens. Naturalmente, recitei a ode de Ricardo Reis que repousa sobre minha clavícula, e depois falei desajeitadamente alguns versos do Poema de Sete Faces do Drummond: “vai, Carlos, ser gauche na vida!”. Por que gauche? Esquerda, torta, desajeitada canhota.

Rindo de forma incrédula, ele disse baixinho: “mentira que tu também gostas de poesia...”. Foi, então, que nossos lábios se encontraram em silêncio, ao som da banda de jazz que embalava a noite (e que nos ajudou a começar a conversar – o que não foi difícil, afinal de contas, porque já nas primeiras frases tropeçamos em Thelonious Monk).

Afastamos nossos rostos, sem desviar os olhares que, naquele momento, compartilhavam uma tensão particular e tentavam transmitir alguma mensagem mútua: onde tu estavas esse tempo todo? Por acaso estudaste as respostas que deverias dar às minhas perguntas antes de vir? O quão imenso é o universo dessa pessoa sentada ao meu lado?

Para quebrar o silêncio, perguntei: “e tu, quais tatuagens gostarias de fazer?”. Ele respondeu que gostaria de tatuar a Sociedade do Anel caminhando enfileirada, cena clássica de O Senhor dos Anéis que, por coincidência, ilustra a proteção de tela do meu computador. Dessa vez, eu ri, sem acreditar, pois aquelas informações todas só poderiam ser parte do trabalho de um excelente detetive particular, ou foi o chef que elabora o roteiro da vida que resolveu me pregar uma peça e caprichou no prato que está sob o cloche (ou tampa de inox misteriosa, para os menos elegantes).

Enquanto a banda tocava Tom, todo o público cantava desafinado e erguendo os copos de cerveja: “dentro dos meus braços os abraços hão de ser milhões de abraços; apertado assim, colado assim, calado assim; abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim; que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. Nós seguíamos o coro, em pé, com os braços dele envolvendo a minha cintura, enquanto balançávamos nossos corpos no ritmo da música e daquela sinestesia sinistra que nos envolvia, especialmente por saber que, qualquer que fosse a história escrita a partir daquele dia, necessariamente envolveria saudade (por paradoxo ou ironia da sinopse de uma sitcom de humor duvidoso).

Há histórias que a gente só descobre o fim escrevendo, pois não se sustentam em uma crônica. Mas, assim como Bandeira escreveu inúmeras, levando Drummond a reunir algumas em uma coletânea em homenagem ao centenário de nascimento do Bardo, estou disposta a transformar em prosa cada uma das histórias envolvendo o largo e lindo sorriso da cadeira ao lado, para quem olhei curiosamente ao som da música tema da Disney tocada pela banda de jazz e admirei mentalmente todas as semelhanças que flutuavam ao nosso redor.

Apesar de serem os primeiros abraços, espero que sejam milhões. Apertados, colados e calados, como compuseram Tom e Vinícius (este último, um dos Sabiás da Crônica), porque tão raro é o encaixe, assim como as semelhanças. Uma pena a distância da estrada que nos separa dos abraços, da descoberta de qual será o fim dessa história e em qual gênero literário encaixaremos o texto. Para todos os efeitos, canto bem baixinho o pedido de Marisa: entre tanta gente chata e sem nenhuma graça, você veio; por isso, não vá embora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O que precede

 

Nós, românticos de plantão, costumamos fantasiar sobre o que vai acontecer após determinado evento. O que acontece depois da primeira conversa, do primeiro encontro, do primeiro beijo. Como vai se sentir o coração depois das primeiras juras de amor, ou mesmo o quão partido ele estará depois do término. Aos lamentos do pós, Marisa Monte dedicou uma canção inteira, prometendo, com sua singular voz, que “haverá de ser feliz também, depois”.

Eu sempre quero escrever depois que acontece algo, bom ou ruim, porque é a hora em que eu já tenho material o suficiente pra desenvolver alguma prosa. Apesar do depois ser interessante, por acontecer após o rascunho de um começo e servir de adubo à imaginação, acho que os românticos versistas dão pouca importância ao que precede. Se nós pararmos pra analisar com cuidado, o antes tem a beleza do abstrato e guarda uma infinidade de possibilidades de bordado com aquela linha vermelha toda emaranhada.

Os preparativos no banho antes do primeiro encontro, o nervosismo antes de entrar no carro com ele pela primeira vez, a troca de olhares tímida e conectada antes do primeiro beijo, as expressões faciais antes de descobrir uma porção de semelhanças, o desajeitado entrelaçar de dedos antes de se sentir à vontade para andar de mãos dadas.

O que vem antes de cada evento parece um sentimento de que estamos tateando no escuro, mas sem perder a coragem de continuar dando novos passos. Só é possível descobrir que a caminhada será boa se estivermos sob a sombra da iminência, para, então, iluminar a nossa história após cada novo passo dado.

É bonito de ver o que precede as três palavras, antes de elas serem ditas. A conexão sublime e silenciosa dos olhares, acompanhada por dois sorrisos bestas e uma ventania na barriga. Os pensamentos recorrentes de estranhamento e questionamentos internos: “é cedo demais para essa frase?”. A vontade incessante de conversar com ele, os pensamentos recorrentes sobre a sorte de tê-lo encontrado, a felicidade doce e inusitada de começar a escrever uma nova crônica. A leve espera pelo bom dia de manhã, e pela conversa rotineira no fim do dia. Os novos planos sobre o hoje, o amanhã, e o depois de amanhã, respeitando o calendário e enfrentando um amanhecer de cada vez. A tranquilidade de ser eu mesma, sem apreensão ou amarras. A troca das três palavras por “sub-sinônimos” como “te adoro” ou “eu gosto muito, muito de ti”. A criação de neologismos estranhos para escrever um texto inteiro dedicado ao que precede, porque a frase está na ponta da língua, mas ainda não foi dita. A gente é diferente quando sente, por isso a troca das três palavras por algo parecido. Aquilo que eu sinto por você parece ser maior, e tem sido uma delícia apreciar o que precede.

domingo, 14 de agosto de 2022

Compasso

Se no pentagrama é onde o compasso abriga cada nota, o parágrafo é o compasso da palavra. Escolhendo o compasso, define-se o ritmo da melodia, os passos da dança e a emoção das palavras que serão escritas. Com um pentagrama em branco, sem compasso definido e sem ler há tempos partituras, resta apreciar Mozart enquanto reparo bem nos detalhes amadeirados e barrocos ao fundo da igreja, ou mesmo nas unhas roídas da cadeira ao lado. Como cheguei até ali? É o que vamos descobrir.

Numa segunda-feira qualquer de junho, bati o ponto no trabalho antes da hora e saí correndo para o Theatro da Paz, na esperança de conseguir um dos cinquenta ingressos para o concerto de jazz exclusivo que ocorreria naquele dia. Cheguei na bilheteria e o avistei de longe, vestindo uma camisa social azul clara, com as mangas dobradas em um visual despojado. Envergonhada, fui direto para o final da fila fingindo que não o vi, apesar de admirar o sorriso e simpatizar com sua inteligência desde o primeiro dia de aula na faculdade.

O funcionário da bilheteria surgiu, de camisa preta e calça jeans, informando a todos que os cinquenta ingressos tinham terminado. Ele olhou pra mim, riu discretamente e disse: é, parece que ficamos para fora. Por dentro, agradeci pela gentileza do cumprimento, pois eu estava tímida demais para ir até ele; por fora, ri também e lamentei pelo azar de não chegarmos mais cedo.

Naquela coincidência residiu o primeiro “e se?”. Um fim de tarde na minha esquina favorita na cidade, o Bar do Parque funcionava lindamente (como sempre, desde 1904), o céu azul Paysandu denunciava que não choveria à noite. Ele perguntou o que eu faria depois dali, falei que iria trabalhar e perguntei quais eram os planos dele. Ele respondeu que deixou tudo organizado no escritório, para ficar livre após o concerto. Demos de ombros e nos despedimos (apesar de, por dentro, torcer fortemente para que ele me convidasse para tomar uma gelada no charmoso Bar do Parque à nossa frente).

Por mensagem, tomei coragem de comentar com ele que aconteceria um concerto no sábado, na reabertura de uma casa tradicional da cidade. Ele respondeu que a banda de jazz tocaria no Theatro na quinta-feira, e combinamos que ele me avisaria o horário que fosse comprar o ingresso dele, para que eu conseguisse comprar o meu também. Era uma programação individual dele, e minha, mas que, de certa forma, poderia ser feita na companhia um do outro. Acabou que ele comprou dois ingressos, e eu também... e assistimos ao concerto juntos. Terminamos a noite conversando no Bar do Parque, ao som de música popular brasileira, mas infelizmente sem Adriana Calcanhotto ou Marisa Monte, porque não deu tempo.

Na semana seguinte, lá estávamos nós, assistindo ao concerto da orquestra sinfônica em uma das muitas igrejas lindas de Belém, analisando a arquitetura barroca do lugar, a trilha sonora de Mozart e as unhas terrivelmente roídas ao meu lado. O tipo de programação que costumo fazer sozinha, mas que felizmente estava acompanhada pelo simpático sorriso que costumava sentar na primeira carteira da sala de aula.

Eu não sabia que ele gostava de música clássica, tampouco que sabia tanto sobre Belém, muito menos que nossos beijos se encaixariam como se tivessem sido escritos em uma partitura. Existem muitos lados bons de conhecer pela segunda vez alguém, um deles é descobrir se eu estava certa sobre as impressões que tive sobre ele quando o conheci pela primeira vez. É como se o segundo ato do concerto fosse absolutamente inesperado, mas igualmente agradável. Terminamos a noite apreciando o rio e as embarcações iluminadas que por ele passaram, entre cabelos embaraçados pelo vento e sorrisos charmosos, aproveitando o que nos proporcionou a coincidência.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Disforia

 

Parece que, do centro para fora, estou congelando. Ao mesmo tempo, de fora para dentro, estou derretendo. Um nó na garganta que não se desfaz. Eu não sei o porquê, não sei o gatilho. Só acontece, do nada, sem aviso prévio ou explicação posterior. Quando deito na cama, parece que meu corpo e o colchão têm um ímã tão forte que não consigo levantar, mesmo que eu queira fazer coisas, quaisquer que sejam. É como se estivesse subindo a serra à noite com a estrada cheia de neblina, tremendo de frio e morrendo de calor simultaneamente. Parece que as larvas me corroem por dentro e não consigo me livrar delas, mesmo que tente ininterruptamente.

Eu me esforço pra ser feliz. Escuto as músicas que costumava gostar, leio os livros pelos quais costumava me interessar, faço planos que em tempos normais me dariam tesão em realizar. Mas continuo apática. Catatônica. Gelada e quente. Trêmula da cabeça aos pés. Sem conseguir sequer chorar ou dar um passo adiante. É um querer da morte, mas sem morrer. Uma singela sensação de inexistência ou de sumiço.

Quando lembro daquela pessoa que costumava ser falante e espontânea, desconheço-a. Parece que foi outra encarnação, ou simplesmente um personagem que criei e matei dentro de mim enforcada por esse nó de marinheiro. Eu deveria estar feliz, mas acho que não sei mais. A vida está simpática e agradável, eu é que me perdi. Estou dentro de um redemoinho de mim mesma. Sou incapaz de avançar ou de terminar as coisas. Como este texto, que deixo pela metade, antes mesmo de chegar à ansiedade.

(dia/mês/ano)

Outro dia, mesma sensação.

Há quase uma semana com o choro engasgado, em um blackout de felicidade. Enxergo apenas círculos concêntricos em tons de preto e escuridão, como quando era criança e esfregava os olhos até ter essa sensação. Em alguns momentos, sei o porquê do choro. Em outros, não consigo explicar e procuro o primeiro motivo que estiver à vista. Problemas que até duas semanas atrás eram apenas incômodos, nos últimos tempos têm sido dementadores. Racionalmente, tento explicar para mim mesma que para deixar de ver o escuro basta abrir os olhos. Não consigo. Pálpebras costuradas por uma linha invisível.

Hoje tomava um sorvete em um local aberto. O sorvete derretia sem parar, mais rápido que o normal. Minha língua nervosamente tentava conter as gotas de chocolate escorrendo pelos meus dedos, mas ainda que eu tentasse lamber por todos os lados, quando estava secando uma banda, a outra insistia em ser mais veloz. Olhei para o sorvete e pensei: sou eu. Enquanto derreto por um lado, tento secar o outro, mas a verdade é que estou inteira banhada de chocolate, com a casquinha amolecida e chocha, o guardanapo enxarcado e inutilizável, tentando conter o inevitável.

Já não tenho me esforçado para ouvir música e raramente acho que estou bonita. Poucos amigos me sobraram e não sinto vontade de procurar novos. Se a depressão fosse os estados da matéria, depois de derreter, o natural é que eu evapore de mim mesma. Virei então um zumbi que anda por todos os lados, cheio de culpa e remorso, sem lembrar da sensação da esperança preenchendo minimamente o coração.  

“Pra onde você está olhando? O que você está pensando?”. Para lugar nenhum, em nada. Olhando tão fixamente que a vista embaça e a cabeça faz eco. Tão silêncio que escuto o barulho da marcha das formigas. Tão solitária que não aguento mais minha própria voz. Tão engasgada que está pra faltar o ar. Espero que tão logo falte, de um jeito que eu evapore tão bem que nunca mais seja capaz de condensar novamente. Ainda não tive coragem de mudar a temperatura, mas torço bastante para que a meteorologia falhe e a onda de calor intenso chegue sem avisar, derretendo sorvetes e evaporando de vez o que não serve mais.

Daqui a pouco faço 27, existe uma expectativa nesse número quando se trata de fins de itinerários. Tomei três gotas em uma colher de chá, mas não adiantou tanto. De toda forma, é hora de tentar dormir.

(dia/mês/ano)

Vou continuar?

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Ótica

 


Depois de sair da oftalmologista, embora não tivesse tantas certezas quanto à receita, precisei investir em novos óculos. A tendência é que enxerguemos o mundo pelas lentes que estamos acostumados, sejam elas boas ou ruins para nossos olhos. Se estamos habituados ao par de lentes, acabamos nos sentindo mais ou menos confiantes para acelerar ou andar mais vagarosamente. Eu estava acostumada a correr, só que precisei acalmar o passo para enxergar melhor, mesmo com os óculos antigos.

Não vou dizer que foi fácil, mas devo confessar que a doutora estava certa e foi o mais adequado a se fazer. Dei alguns tropeços, na ânsia de correr, mas era preciso, antes de tudo, caminhar. Na minha cabeça, ouvia constantemente o “Tec, tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou?”. A bem da verdade, quem dita o ritmo a dois é o ajuste. Pensei que não daria certo, cheguei a desistir, mas resolvi apostar que o trajeto é melhor que a velocidade e eu queria, então, viver para ver aquela nova história. Com a receita em mãos, fomos à ótica.

Separamos diversas armações, arredondadas e pretas, para escolher a que ficasse melhor no rosto dele. Ele experimentava, eu opinava, ele ponderava e separava as classificadas. Se eu já admirava o quão bonito ele é, nesse dia admirei mais. Para isso, não preciso de suportes oculares, pois enxergo bem as obviedades. Assim como as armações de óculos, o amor tem que ser leve: não deve pesar no rosto, tampouco no coração.

A questão é que, para ter novos óculos, é preciso abandonar as lentes antigas. Reconheci os arranhões nas minhas e ele estava, afinal, escolhendo novos óculos. Para escrever novas histórias, é necessário olhar para a tela do computador vestindo o novo grau. Para não tropeçar, é imprescindível o ajuste – e, do lado de cá, acho que estamos começando a acertar o passo.

Quando se sente, deve ser fácil enxergar o outro pela manhã, deitado embrulhado, com a luz do sol entrando pelo balancim, após uma programação rotineira na quarta-feira à noite. Deve ser simples fumar um cigarro na praça, enquanto se questionam sobre os mistérios do futuro e as coincidências que os rodeiam. Deve ser gostoso como uma transa à meia-luz, ainda que silenciosa e discreta. Deve ser tão saboroso quanto um almoço inesperado, daqueles que acontecem pura e simplesmente pela fluidez da noite anterior e do dia seguinte.

É fácil sentir, difícil é enxergar. Aqui mora o otimismo: estamos trocando as lentes. De óculos redondos e pretos ou quadrados e rosas, o importante é ver um ao outro. E eu o vejo, admiro, provoco e espero. Ele, de outro lado, compreende também minhas passadas largas com as pernas curtas, segurando na minha mão e acreditando tanto quanto eu na tentativa de acertar o passo. Eu só quero que ele leia o texto que eu fiz pra dizer que o adoro cada vez mais, e que eu o quero sempre em paz. Porque estou pensando em você, agora e sempre mais.

Continuação do texto anterior.

(2/2)

sábado, 6 de agosto de 2022

Oftalmologista

 


Fui à oftalmologista, esperando finalmente ajustar minhas limitações oculares. Já imaginava que fosse míope, por só conseguir enxergar tão de perto, mas tão de perto, que seria incapaz de ler o letreiro do ônibus a poucos metros de distância. Ou a placa grudada na parede. Ou a paisagem da alvorada. Ou as letras não escritas no papel em branco. Nessa nova experiência visual, atribuí à miopia a dificuldade de enxergar o que, na realidade, não estava lá.

O diagnóstico foi certeiro: não há como ver o vácuo, ainda que exista a perspectiva de preenchê-lo. Tentei colorir o vazio com raspas de lápis de cor, mas continuei sem entender o que estava escrito no papel. Pedi ajuda para interpretar, abri meu coração e disse o quão incômoda estava sendo aquela miopia recém-descoberta, inusitada, precoce e inesperada. Eu, que costumava ter a vista de uma pilota de avião, estava com dificuldades para ver alguns palmos diante do meu nariz.

 Naquela conversa, ganhei um par de óculos, com as lentes de um grau menor do que meu déficit visual, mas que me ajudaram a enxergar. Um desenho lindo se fez imediatamente no papel, retratando uma avenida com via de mão dupla, separada por um canteiro cheio de imensas árvores. Com o desenho, histórias pairaram sobre a folha e logo pude perceber que o problema talvez não estivesse somente na minha visão, mas sim na falta dos óculos para enxergar aquele arranjo de poucas palavras e muitas cores. Junto com o desenho e as frases, um samba começou a entoar debaixo do sereno da noite bucólica daquela avenida. Depois da feira, virando na esquina azul, um pouco mais pra frente, à direita, estava a parada que me fazia sentir uma ventania interna e admirar o largo sorriso amarelado que coincidia com os charmosos pés de galinha. Ao estacionar o carro e engatar o freio de mão, os óculos repousados sobre meu nariz passavam a ser dispensáveis, sendo substituídos pelo baixo tom de voz por trás da máscara e pelos ajustes espontâneos com as mãos nos macios cabelos cacheados.

Os momentos que precediam o engatar do freio de mão costumavam ser de dúvidas e receios, enquanto os do retorno eram inebriados de bons sentimentos, boas músicas, descobertas, experiências e novas histórias. Todas as vezes em que eu estava dentro do desenho registrado no papel o resultado era uma agradável sinestesia. Ao me afastar dele, no entanto, a folha se descoloria até embranquecer completamente, de modo que nem os óculos eram capazes de me fazer enxergar o desenho que, até há pouco, ali estava. Precisei voltar à oftalmologista.

“Tec, tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou? Tec, tec. Troca de lentes.  Melhorou ou piorou? Tec, tec. Troca de lentes. Melhorou ou piorou?”

“Eu não sei, doutora. Parece-me que minha miopia é seletiva, restrita à arte registrada naquela página.”

“Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou. Acho que preciso pular novamente na folha para saber.”

“Não pule, se o desenho não está sempre lá, talvez ele não exista. Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou. Mas eu quero pular, sentir e apreciar toda aquela visão.”

“Se ela realmente existe, você conseguirá ver sem os óculos. Se a arte não te provoca, você não deve provocá-la. Pelo menos, não todas as vezes. Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou.”

Se há ou não algo escrito no papel, se é falha a comunicação... não posso saber. É como uma moldura de quadro grudada na parede sem a obra dentro, como um violão afinado sem que alguém saiba tocá-lo, como um jornal que não transmite notícias. As ferramentas estão lá, mas não cumprem efetivamente seu papel de comunicar. Deixar nas mãos de outro artista os pincéis para pintar um quadro que deveria ser feito em coautoria não é justo nem com a dupla de artistas, nem com o resultado. Inclusive porque se os pincéis estão nas mãos do que pouco pinta, talvez o quadro não chegue a ser finalizado. Nunca será exposto. Não causará emoções. Ficará adstrito à atmosfera abstrata do “e se...”, sem nunca ser concretizado, seja para se tornar disforme, seja para se tornar belo. Uma arte que não sai do pincel é um desperdício de tinta, porque ela seca no godê, ainda que se evite o vento, ainda que se queira deveras construir a obra e pendurá-la na parede.

“Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Melhorou. Um pouco.”

Presa às lembranças dos tempos breves de contato com a folha colorida, ponderei que talvez seja necessário trocar as lentes para ver melhor. A camisa vinho, as conversas, os cafés da manhã, o cuidado, a pele macia, o perfume escolhido conforme a ocasião, o largo sorriso que faz fechar os olhos, a enciclopédia musical e literária, o relógio de pulseira off white, a bermuda bege, a voz baixa e branda, o ajeitar dos cabelos cacheados, a pizza marguerita. Afastei um pouco da folha de papel, ele não estava lá – por falta de tempo ou por personalidade e, na dúvida, pela falta de envolvimento e reciprocidade. 

“Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou. Não sei se são essas novas lentes, mas a garganta fica inquieta se não consigo enxergar com clareza. Se não sei o que vejo, não posso apreciar. Se não aprecio, o único sentimento que gera é ansiedade. Tenho medo de dar novos passos se não consigo enxergar com clareza o que está bem em frente.”

“É preciso tomar distância, ainda que sejas míope. Talvez o teu problema não seja a miopia, mas sim para onde olhas e o que esperas ver. Tec, tec. Melhorou ou piorou?”

“Piorou.”

Porque não sei o que fazer. Sei para onde quero olhar, mas ele não me olha de volta. As tintas do godê podem secar e, como tenho o costume de muito falar, uma hora ou outra posso desistir do monólogo, em razão do silêncio que recebo de volta durante as tentativas de pinceladas. A arte comunica e, se não o faz, não o é. A arte expressa e, se não o faz, não o é tanto quanto. Estou de óculos e semicerrando os olhos, mas preciso enxergar para continuar a coautoria, sob pena de tropeços. Se não enxergo, sinto-me e sinto só. De óculos ou não, o sentimento é míope se não é compartilhado – e, nesse caso, não há como ajustar as lentes.

To be continued...

(1/2)

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Epílogo

 

Ainda não sei ser matinal, mas já abdico de um hambúrguer por um prato de salada. Escuto as mesmas músicas. Outras também. As mesmas e outras, misturadas, porque sou a construção do que fui e do que tento ser hoje. Ouço a playlist em italiano torcendo para absorver o idioma, porque estou mais longe do que nunca da dupla cidadania. Uma banda semi-pop adolescente, de ritmo que não sei nomear e batidas de curtição em festival, com um copo na mão e um cordão cheio de logomarcas pendurado no pescoço. Nunca fui, vi apenas fotos dos looks arrumados e divulgados para a multidão dos likes.

Agora estou eu, aqui, colocando-me à prova diante do desconhecido, sem saber direito como agir ou como falar, porque não sei ser outra coisa senão eu mesma. Com meu jeito espontâneo, que solta as palavras que estão na ponta da língua, escreve textos muito mais pelo momento do que pela pessoa, sente o vento fugindo das mãos enquanto dirige em alta velocidade pela via expressa.

Estou descobrindo como é ser eu, em todas as minhas nuances, gargalhadas com a arcada dentária escancarada, piadas ridículas, madrugadas trabalhando, corridas noturnas na praça, terapia semanal, quadros pintados em uma profusão de cores, roupas escolhidas a dedo para expressar minha personalidade. Cansei de me conter para caber, quero transbordar meu eu por onde passar. Imprimir minha digital em todo canto que for, sem medo de falar demais ou usar muitas cores. Quero ser bem quista pelo que sou, e pelo que ainda vou descobrir sobre mim, porque, nesse momento, não há alguém mais importante no mundo do que a mulher que tento resgatar e salvar: eu mesma.

Para onde vou? Não sei, mas espero voar sem medo das manobras, como Fernão Capelo Gaivota e sua impetuosa coragem de transcender. Com as raízes levantadas, vou seguir viagem para onde eu possa ser um vitral de versões minhas que, iluminado pelo sol, promove efeitos de luzes espetaculares e coloridas. De dentro para fora. A incerteza não me constrange, porque agora decidi explorar todos os caminhos diante de mim e sei que sou capaz. Dirigindo em alta velocidade e com a mão esquerda para fora da janela, não dá pra segurar o vento. Eu sou o vento.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Garça da crônica

Hoje, sozinha, saí pra ler o pôr-do-sol e ver umas crônicas. Sentei em um banco qualquer na Casa das Onze Janelas e comecei a ler as pessoas. Vários casais apreciando drinks e ouvindo o saxofonista dar seu show, alguns jovens que estavam ali só por estar (como eu), debutantes fazendo fotos... Uma leitura de cenário que a gente só tem quando se põe a observar o qualquer. Em um dado momento, uma mulher desconhecida pediu meu banco emprestado, pois a mãe dela completaria 80 anos e estava fazendo um book. A senhorinha chegou, toda garbosa, fazendo poses e dando risadas, comemorando as oito décadas de vida. Olhando a cena, ri junto com aquelas mulheres. Achei tão afetuosas a senhorinha, a fotógrafa e a filha, que, de certa forma, senti que fazia parte do momento só por ter emprestado meu banco. Valorizei demais a vida, bem ali, com o sol das 17h ardendo nas costas. Pedi para a mulher desconhecida tirar uma foto minha, porque também queria registrar a bonita tarde. Ela virou pra mim e disse: roda (fazendo círculos com o dedo indicador). Apesar de me sentir um pouco idiota, comecei a rodar e rir para a desconhecida. Ela devolveu meu celular, agradeci, e foi embora. Voltei ao banco e à geração dos "Sabiás da Crônica", que pavimentaram o caminho dos cronistas, embelezando o corriqueiro com a bohemia carioca. Pedindo licença à minha modéstia, gostaria de dizer que hoje me assumi "Garça da Crônica", por narrar timidamente a bohemia belenense em versiprosa (apesar de não ser lida). Se vocês me perguntassem qual é meu sonho de vida, diria que é ser cronista. Acabei como professora de processo civil e advogada, mas tudo bem... Tenho coração de literata. O sol se pôs por trás da nuvem, fazendo chincana com a minha cara, que saí só para vê-lo ("difícil ver o sol tocar o horizonte", disseram pelo meu whatsapp). Perdoei o sol, porque a tarde foi linda e a solitude é deliciosa que nem um pudim de café, como nas crônicas, em que "o extraordinário mergulha no cotidiano e o prosaico deságua no sagrado" (Augusto Massi, no prefácio do livro citado, que descobri pelo podcast da 451).


Texto escrito em 16/07/2022,

sobre uma tarde bonita em Belém do Pará.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Aquarela de café

A fluidez da tinta aquarelável na ponta do pincel denuncia o desafio que é encostar levemente no papel, vendo um pingo se expandir como quando um copo desajeitadamente vira sobre a mesa. Sem ter consciência da delicadeza da arte, desafiei-me a aquarelar o café, que foi do coador ao godê em poucos instantes.

O godê, dividido em seis círculos, como se estivesse formando o centro de uma flor e suas pétalas, seria o espaço para diluir o pó de café em água, transformando-o em diferentes tonalidades. Quanto mais pó, mais escura a tinta. Quanto mais água, mais diluída. Quatro eram os materiais para a arte amadora: papel, pincel, café e água. Com esses mesmos instrumentos, seria possível fazer uma porção de coisas, inclusive escrever saboreando um café quente recém passado.

Ao molhar a ponta do pincel no marrom claro e encostar no papel, logo vi a tinta fluindo mais do que eu esperava e se espalhando sem balizas. O fundo quase bege e o papel timidamente encharcado sussurravam: vai com calma. Tentei de novo, num marrom que era quase o tom de uma bermuda cargo, mas que como tinta não representava tanta cafonice. Pintei levantando o queixo de forma altiva, do jeito de quem acha que sabe das coisas, e novamente a tinta se espalhou mais que o esperado, formando qualquer borrão diferente de uma rosa, que era o que eu tentava rascunhar.

Por perceber que não conseguiria sozinha, precisei levantar a mão e fazer o que evito sempre: perguntar a alguém mais experiente por onde é que se vai. Se tivesse perguntado mais, talvez tivesse tropeçado menos, errado menos os caminhos, molhado menos o papel, pintado flores que se parecessem mais com rosas. Nesse afã de ser sabida e metida a artista é que descobri que sou coisa alguma, pois não passo de um punhado de coragem misturada a uma cara de pau inabalável.

Como a tinta marrom médio que toca no papel e se espalha, percebi que nunca conseguirei prever o que será pintado, a menos que tenha calma para controlar a respiração, o pulso esquerdo e os impulsos. Falta-me habilidade com a fluidez do inusitado, com a dança estranha do pincel na página e com a tinta desobediente fazendo o que bem entende. A vida é fluida como a aquarela, que precisou se misturar ao café para me mostrar que, assim como no hiato entre papel e pincel, preciso aprender a improvisar se minhas folhas pintadas não parecerem folhas.

Foi desse jeito que aprendi a usar o marrom escuro, destinado aos detalhes e às impressões finais do meu jardim subversivo às lições de botânica. Errei tantas vezes quantas tentei, mas, ao final, ficou bonita a pintura. Escrevi desajeitadamente a palavra “criar”, porque foi o que fluiu e era o que eu gostaria de fazer na vida. Criar aquarelas de café, mil versões de mim, crônicas sem leitores e sonhos que ainda não realizei. Viver sutilmente, sorrindo do jeito que devo manusear o pincel: levemente e com pausa para respirar. Quem sabe da próxima vez eu consiga imprimir à arte a resiliência com a qual pretendo levar a vida daqui pra frente. Enquanto isso, ouvindo Beatles, aproveito o amargor da deliciosa mistura de cevada com café para terminar a noite.